Pesquisa em Cadáveres 

José Roberto Goldim

A pesquisa científica que utiliza cadáveres apresenta implicações morais, legais e sociais que devem ser consideradas pelos pesquisadores. A utilização de cadáveres já foi proibida em 1307, por uma bula do Papa Bonifácio III. Inúmeros outros documentos também mantiveram esta proibição, como as normas de pesquisa da Alemanha de 1931.

A utilização de cadáveres, ou órgãos e tecidos deles retirados, para fins de pesquisa é um tema ainda pouco explorado pelas normas e diretrizes que regulamentam estas atividades. A legislação existente no Brasil sobre este tema restringe-se à utilização de cadáver não reclamado para fins de pesquisa e ensino (Lei 8501, de 30 de novembro de 1992) e a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

 A Lei 8501/92 apenas estabelece os critérios para a utilização de cadáveres não reclamados, não abrangendo outras questões referentes a utilização de  partes de cadáveres submetidos à necropsia.

 A Resolução 196/96 aborda, em diversos de seus itens, diferentes questões que podem ser relacionadas à estas pesquisas. O item III.3 estabelece os critérios mínimos que devem ser mantidos para a realização de pesquisas, destacando-se a necessidade de realização da pesquisa justificada pelos conhecimentos que serão gerados; a realização de estudos prévios em laboratórios e em animais; a impossibilidade de obtenção das informações por outros meios; a necessidade de ser obtido o consentimento informado e o respeito às tradições culturais das diferentes comunidades. Neste mesmo item é ressaltada a importância da preservação das informações obtidas na pesquisa e de que o seu uso fica restrito a esta atividade. O item IV.3.d estabelece os critérios para a realização de pesquisas com pessoas com "diagnóstico de morte encefálica". Esta denominação não é a mais adequada pois o que está em questão é a caracterização da morte de uma pessoa e não de seu encéfalo. A melhor redação deveria ser "pessoas com morte caracterizada por critério encefálico". Este deve ter sido o espírito do legislador. Porém, a única referência legal para a utilização do critério encefálico para o estabelecimento da morte de um indivíduo é a sua utilização para fins de transplante de órgãos. Existem opiniões do Conselho Federal de Medicina e da Consultoria Jurídica do HCPA de que este critério encefálico pode ser utilizado em outras situações que não a de captação de órgãos para fins de transplantes, mas relacionadas a assistência. Mesmo que este critério fosse utilizado, deveria ser obtida a autorização formal dos familiares para a utilização do cadáver ou de suas partes para fins de pesquisas. Finalmente, o item VI.3.c estabelece que todas as fontes de material de pesquisa devem ser identificadas no projeto de pesquisa e na sua divulgação.

Com base nas colocações anteriores é possível estabelecer alguns critérios para os projetos de pesquisa que necessitem utilizar cadáveres ou suas partes como fonte de informações;
 

a)  a obtenção da autorização dos familiares ou representantes legais é sempre necessária, salvo na situação prevista na Lei 8501/92, quando for um cadáver  não reclamado;

b)  devem ser buscadas alternativas, através de modelos animais ou outras formas de pesquisa laboratorial, que substituam a necessidade de utilização de cadáveres ou de suas partes em projetos de pesquisas;

c)  todos os procedimentos que serão realizados devem ser descritos no projeto de pesquisa assim como a estratégia de obtenção dos materiais biológicos que serão necessários, sendo o mesmo subemtido à aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa;

d)  deve ser preservada a privacidade de todas as informações referentes aos indivíduos que tiverem material biológico utilizado na pesquisa, preferencialmente, os próprios pesquisadores não devem ter acesso aos dados de identificação destas pessoas;

e)  os materiais biológicos que forem ser descartados após a realização de exames complementares à necropsia, poderão ser utilizados para fins de pesquisa, desde que adequando-se ao que propõe a Resolução 02/97 da Comissão de Pesquisa e Ética em Pesquisa do HCPA sobre a Utilização de Material Biológico Descartado em Projetos de Pesquisa;

f)  todas as atividades de pesquisa que envolvam situações de utilização de cadáveres devem preservar o respeito à memória das pessoas envolvidas, evitando toda e qualquer situação que possa gerar constrangimentos.

 Esta é uma área de realização de projetos de pesquisa que deveria merecer uma resolução específica, por parte da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), no sentido de estabelecer critérios nacionais e uniformes para a pesquisa em cadáveres ou suas partes.
 

Parecer dado à Comissão de Pesquisa e Ética em Saúde do Hospital de Clínicas de Porto Alegre em dezembro de 1998.



Pesquisa em cadáveres
Pesquisa em Seres Humanos 

Página de Abertura - Bioética

Texto Incluído em 24/04/1999
©Goldim/1999