A imunidade contra a COVID-19: Para além dos anticorpos.

Autor: Dr. Tiago Veit – Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da UFRGS.

A pandemia de COVID-19 já fez mais de 70 mil vítimas no Brasil e não dá sinais de que vá terminar tão cedo. Além desse rastro de fatalidades, muitas pessoas infectadas estão lidando com sintomas persistentes associados à infecção, sem perspectiva certa de melhora (veja o post aqui). Para aqueles que tiveram a infecção e se curaram, ainda resta a dúvida: “estou imune? E por quanto tempo?”. Essas questões ainda estão em aberto e preocupam milhões de pessoas em todo o mundo, incerteza essa que é natural frente a esse vírus que, após mais de meio ano do seu descobrimento, ainda está se dando a conhecer nos mais diversos aspectos.

Com a rápida disseminação dos testes diagnósticos, é possível obter um perfil epidemiológico da população, muito embora a sua capacidade diagnóstica individual seja limitada. A interpretação desses testes, tanto os moleculares (que avaliam a presença do RNA viral no corpo, considerados o padrão-ouro) quanto os sorológicos (que avaliam a resposta de anticorpos à presença do vírus), pode levar a conclusões errôneas por parte dos pacientes testados.

Sabe-se que alguns pacientes comprovadamente infectados pela COVID-19 pela análise molecular (RT-PCR) não possuem níveis de anticorpos detectáveis via teste sorológico. Isso pode acontecer pelas mais diversas razões: uma delas é a sensibilidade limitada dos testes; outra razão está relacionada à dinâmica da produção de anticorpos no corpo, que costuma ter um pico a três semanas de infecção e depois ir baixando com o tempo (post relacionado a esse tópico aqui). Mesmo levando em conta essas variáveis – timing e sensibilidade – o fato é que alguns pacientes acabam desenvolvendo níveis muito baixos de anticorpos, ao passo que uma boa parcela dos infectados até atinge níveis razoáveis, mas que decaem rapidamente, o que é comumente confundido com uma suposta ausência de memória imunológica contra o vírus.

O objetivo desta postagem é tentar explicar o porquê de consistir em uma supersimplificação levar em conta apenas os anticorpos em consideração para avaliar memória imunológica. A memória imunológica tem vários componentes e é sobre esses vários componentes que este texto aborda.

Em primeiro lugar: medimos a resposta imunológica às infecções por meio de anticorpos simplesmente porque são os elementos de imunidade mais fáceis de medir. Os anticorpos IgM e IgG são abundantes no sangue e são usados como um indicativo de infecção recente e memória imunológica, respectivamente. Mas não são os únicos.

Nós produzimos cinco tipos diferentes de anticorpos, ou imunoglobulinas (Ig): IgM, IgG, IgA, IgE e IgD. A IgG é o anticorpo mais abundante no sangue e é, por assim dizer, o  marcador clássico de memória imunológica. Mas o anticorpo mais abundante do CORPO é do tipo IgA. A IgA está presente nas mucosas, ou seja, nos portais de entrada do vírus no organismo, dissolvida no muco que reveste os tratos gastrointestinal e respiratório. É ela, provavelmente, a principal responsável por desarmar o vírus em uma segunda infecção.

Tanto a IgG quanto a IgA são mensuráveis a partir do sangue, mas a IgA aparece em uma concentração bem menor. Além disso, a fonte de IgA no sangue é diferente da fonte de IgA das mucosas. A IgA de mucosa é produzida por células B que foram ativadas na primeira infecção e que residem abaixo da mucosa, ao contrário da IgA do sangue, cujas células produtoras localizam-se, em sua maioria, na medula óssea. Um estudo publicado por um grupo suiço (link), em maio deste ano, mostrou que vários pacientes que haviam testado negativo para anticorpos IgA e IgG no soro apresentavam leituras positivas de IgA nas mucosas. Ou seja, a leitura de anticorpos no sangue não conta toda a história sobre o estado de imunização do paciente, e nem ao menos esclarece totalmente sobre a parte da imunidade relacionada aos anticorpos (chamada também de imunidade humoral).

Além de gerar células produtoras de anticorpos contra o vírus, também são geradas células B de memória que ficam circulando no sangue e podem ser reativadas para produzir mais anticorpos em uma segunda infecção. Essas células B já foram descritas em convalescentes com níveis indetectáveis de anticorpos. No entanto, a sua importância seria menor para evitar uma segunda infecção e mais para controlá-la, caso viesse a acontecer.

Se os anticorpos já são uma aproximação limitada (embora aceitável, para muitos propósitos) daquilo que está acontecendo com o sistema imune da pessoa infectada, a memória imunológica, e principalmente a memória contra os vírus, depende sobremaneira de outros tipos de células, os  linfócitos T, ou células T. A célula T mais famosa no combate às infecções virais é a célula T citotóxica, que mata especificamente as células que estão infectadas com o vírus. Outro tipo de célula T importante é a célula T auxiliar, que atua orientando outras células do sistema imunológico no combate à infecção. Ambas as populações de células T se expandem durante a infecção para combater o vírus. Após uma infecção, algumas dessas células T permanecem como células T de memória que reconhecem especificamente os componentes do organismo invasor. Algumas permanecem circulando no sangue, mas a maioria se dirige a diversos tecidos do corpo, especialmente aos tecidos de entrada do vírus, e ali ficam, aguardando a existência de uma nova infecção pelo mesmo organismo.

Essas células T de memória são muito mais difíceis de medir do que os anticorpos, até porque, uma vez nos órgãos, uma boa parte dessas células T de memória não voltará para o sangue, o que limita a análise dessas células de memória residentes. Não obstante, alguns grupos de pesquisa especializados na análise de células T no sangue publicaram resultados animadores: um estudo publicado pela revista Cell e outro pela plataforma de pré-impressões MedRxiv  revelaram que a maioria dos pacientes infectados apresentavam células T que reconheciam o SARS-CoV-2. O mais interessante desses estudos é que foi observado que uma parcela significativa de indivíduos NÃO INFECTADOS (~50% e 34%, respectivamente) possuía células T reconhecendo os antígenos do SARS-Cov-2, provavelmente devido a uma memória contra infecções anteriores por outros coronavírus.

Um terceiro estudo, publicado no repositório Biorxiv mostrou a presença de uma forte resposta de células T em 30 de 31 indivíduos convalescentes que tiveram COVID-19 assintomática ou leve. A diferença mais gritante nesse estudo foi encontrada no grupo de familiares de indivíduos convalescentes (que foram expostos, mas não haviam sido comprovadamente infectados): enquanto 17 deles (61%) apresentava anticorpos circulantes contra o vírus, 26 dos 28 (93%) apresentavam células T de memória contra o SARS-CoV-2!

É possível que essas populações de células T de memória desenvolvidas ao longo da infecção tenham a capacidade de, no longo prazo, impedir a infecção, ou contribuir para limitar a sua extensão, gerando um quadro mais leve? Sim, é possível. Entretanto, por mais auspiciosas que sejam essas observações, não se pode bater o martelo sobre as implicações associadas a esses achados de pesquisa. São necessários mais estudos para entender se a presença dessa memória imunológica é efetiva e duradoura. Nas duas epidemias anteriores por coronavírus (SARS-CoV-1 e MERS), observou-se o desenvolvimento de uma memória imunológica de células T de longa duração, ao passo que os níveis de anticorpos circulantes caiam após alguns meses. Se a memória contra o SARS-CoV-2 se comportar assim, temos algum motivo para alívio. Por outro lado, outras infecções por coronavírus sazonais costumam deixar memória fraca, em torno de um ano (ver post aqui).

Em resumo,

  • Os anticorpos circulantes no sangue nos dão uma ideia limitada da imunidade adquirida ao vírus; na maioria dos convalescentes, eles diminuem após alguns meses. São e serão, ainda por algum tempo, a única (e parca) evidência de imunidade acessível ao cidadão comum;
  • A IgA de mucosa é o tipo de anticorpo provavelmente envolvido na resistência a uma segunda infecção, mas não é comumente medido;
  • A memória de células T contra o vírus pode ser desenvolvida mesmo na ausência de anticorpos circulantes, o que é consistente com um papel não redundante em relação aos anticorpos como um determinante-chave da proteção imunológica contra a COVID-19. É outra variável que não estará acessível ao cidadão comum.

Várias questões permanecem para resposta da ciência no curto e médio prazos, todas sob a grande questão guarda-chuva “É possível pegar COVID-19 duas vezes?” e sua questão subordinada “caso sim, quanto tempo dura a imunidade contra a COVID-19?”. Imagino que o leitor, agora munido da informação contida neste artigo, possa pensar em várias dessas questões. Permitam-me arriscar sobre a primeira: SIM, deve ser possível pegar COVID-19 duas vezes.

Provavelmente veremos vários casos, ainda este ano, de pessoas com dois episódios de COVID-19 claramente separados, para além de quaisquer dúvidas. Está claro para mim que, se, na maioria das vezes, os infectados desenvolvem anticorpos e/ou células T de memória contra o vírus, há claramente uma minoria de pessoas que não produz nem um nem outro, e essas poderão ser reinfectadas de maneira reiterada. Para os restantes, será uma questão do tempo que essa memória durar. E esse tempo pode ser de 6 meses a vários anos. E do que dependerá essa imunidade? Provavelmente de uma variável clínica que não estará acessível ao cidadão comum. E é por essa razão que, até o desenvolvimento de uma vacina, mesmo os convalescentes deverão prestar atenção à conduta de distanciamento social, do uso de EPIs como máscara e outras medidas que evitem sua reexposição ao vírus.