ILUSTRAÇÕES
Gabriela Barbosa Borges
Gabriela Berghahn Santana
Maria Stela Jacob Saldanha (*Capa feita pelas três ilustradoras)
“Posso jogar?”, pergunta a criança. “Pode”, responde a mãe, ao que o pai se opõe: “Já chega de telas por hoje”. O diálogo é fictício, mas a situação é um resumo do que acontece na minha família. Com um irmão de dez anos, estudando em casa e tendo acesso a notebook, celular e videogame, a questão que norteia os dilemas é quanto tempo ele pode ficar nas plataformas.
Um estudo realizado por pesquisadoras do campus Farroupilha do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) em 2020 fundamenta esse cenário. As entrevistas foram feitas com 13 crianças de classes B e C, de seis a 12 anos, para saber o que contavam sobre o brincar em tempos de distanciamento social.

“Antigamente, quem sabe se tu perguntasse isso nos anos 1990 e 2000, as crianças te diriam que estariam vendo televisão”, compara Samantha Dias de Lima, professora e uma das pesquisadoras responsáveis pelo estudo. Hoje, o aparelho divide espaço com jogar no videogame ou no celular e ver vídeos no Youtube. Na pesquisa, também foram citadas brincadeiras mais tradicionais, como pega-pega e jogar bola, por exemplo.
Imaginando o futuro, Samantha acredita que a tecnologia estará cada vez mais presente em diferentes âmbitos para crianças com condições socioeconômicas para isso. “A tecnologia é ruim? Claro que não, ela é superboa, desde que a criança tenha acesso a outras coisas que não só a tecnologia”, pondera.
A última edição da pesquisa TIC Kids Online — Brasil, realizada de outubro de 2019 a março de 2020, mostra que 89% das crianças e adolescentes brasileiros entre nove e 17 anos estão conectados à internet.
Ao todo, foram 2,95 mil entrevistados nessa faixa etária, além de 2,95 mil pais ou responsáveis, de várias regiões do Brasil.
Entre diferentes
“Quando ele vê a gente pegar o celular, destravar com a digital e mexer com o dedo, por exemplo, para cima, para ver uma notificação, ele faz a mesma coisa: coloca o dedinho e coloca para cima”, conta a estudante Cristiane Silva dos Santos, mãe de Cecília, de nove anos, e de Matteo, de um ano.

Na casa da família, no bairro Eunice Velha, em Cachoeirinha, a relação das crianças com as telas se difere. Cecília nasceu em uma época em que o uso de smartphones, por exemplo, não era tão comum. Já Matteo é capaz de deixar brinquedos de lado para pegar um celular ou ver televisão — embora isso não seja incentivado pela família. O garoto nasceu um mês antes do primeiro caso relatado de covid-19 no Brasil.
Junto ao marido, o técnico em TI Douglas Dias da Silva, a estudante planeja iniciar 2022 com um processo de adoção. A ideia é que os filhos tenham como recorrer uns aos outros na vida adulta e que os cuidados de Cecília, que tem síndrome de Lennox-Gastaut e autismo secundário, possam ser divididos entre os irmãos no futuro.
Para o terceiro filho ou filha, Cristiane entende que a presença no mundo da tecnologia deve ser estimulada. O casal pretende adotar uma criança com idade próxima à de Cecília.
Quanto ao ambiente virtual, a pediatra Susana Graciela Bruno Estefenon, do grupo de trabalho sobre saúde na era digital da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), faz um alerta. “Você ensina o seu filho pequeno a não pôr o dedo na tomada, depois começar a ir para rua e olhar para os lados para atravessar, e assim vamos indo. Então temos que ter esse critério para proteger nossos filhos online.” Ela acredita que, no futuro, por pressão da sociedade, a indústria do entretenimento fabricará mais jogos que contemplem o desenvolvimento da criança.
Por outro lado, o psicólogo Henrique da Silva Ferreira, que atende principalmente crianças e adolescentes, aposta que o foco será em brinquedos menos preocupados com a questão do desenvolvimento infantil e mais interessados em prender a atenção. A alternativa se delineia em poucas palavras: espaços de livre expressão para as crianças.
Sobre o efeito do isolamento social no brincar, ele explica que a fase mais afetada é a dos três aos seis anos. Neste período, as crianças já têm uma rotina e precisam interagir socialmente. “Uma criança de quatro anos que não tem uma vivência [de interação e rotina para além da casa] dos três aos quatro passou 25% da vida em isolamento, então olha o impacto que vai ter isso”, expõe.
Até os seis anos, as experiências têm um forte papel na construção da personalidade. Por isso, Henrique projeta que as crianças que tiverem um déficit neste desenvolvimento podem se tornar adolescentes menos criativos, mais inseguros e com maior dificuldade de se comunicar, de interagir e de tolerar frustrações.
Uma maior atenção dos pais, a possibilidade de uma integração a pequenos grupos para brincar, a realização de atividades na natureza e o apoio psicológico e pedagógico são algumas opções para ir contra esse caminho.
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O faz de conta E o que acontece de verdade
Se você começou a colocar na balança a sua infância e as das crianças de hoje, saiba que não tem como comparar. Monica Fantin, professora e pesquisadora do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), aponta que a questão é ampliar o repertório, ensinando brincadeiras de um tempo que talvez a criança não conheça.
“Quanto mais a criança brincar, fantasiar, fazer de conta, quanto mais imaginação e repertório ela tiver para isso, mais tarde mais elementos ela vai ter para poder lidar com a realidade da vida, com os desafios”
MONICA FANTIN, professora e pesquisadora do Centro de Educação da UFSC
Junto com boneca, carrinho e avião, por exemplo, Monica elenca inteligência artificial, internet toys (brinquedos ligados à internet) e preocupação com a sustentabilidade e com um menor consumo como algumas tendências para o futuro.
A pesquisadora ressalta que é pela brincadeira que a criança não apenas imita o que vê no mundo do adulto, mas transforma. “Quanto mais a criança brincar, fantasiar, fazer de conta, quanto mais imaginação e repertório ela tiver para isso, mais tarde mais elementos ela vai ter para poder lidar com a realidade da vida, com os desafios.”
O guarda-chuva virou vacina, a máscara foi parar até nas bonecas e o álcool em gel se tornou a solução na brincadeira do distanciamento social. A coordenadora pedagógica Katlen Böhm Grando e o professor de Sociologia Marcelo Ribeiro de Freitas entendem que é assim que a pandemia vai adentrando as brincadeiras das filhas Maitê, de cinco anos, e Flora, de três anos.
Na casa da família, no bairro Lomba Grande, em Novo Hamburgo, telas são exceção e brinquedos elétricos e eletrônicos não devem entrar, pelo menos até os sete anos. Os pais tomaram como inspiração a pedagogia Waldorf, que incentiva a presença de elementos mais naturais na infância.
As filhas têm contato com livros, brinquedos de madeira, de tecido, de plástico e com brincadeiras no pátio, usando bicicleta, patinete e caixa de areia, por exemplo. Mas o tempo maior em casa trouxe algumas mudanças na regra: as telas passaram a ser usadas para videochamadas com os avós, os podcasts de histórias infantis viraram sucesso e houve uma compra maior de brinquedos e livros.
“A gente tem confiança de o que elas estão fazendo hoje vai também contribuir para que, quando entrem para a informática, sejam mais do que meros usuários responsivos, que são passivos, consumidores. A gente espera que elas sejam proativas. E, para isso, elas têm que ter imaginação”, pontua Marcelo.
Fantasiando o futuro
“Na verdade, todos brinquedos vão ter um chip para se teleportar para o seu dono, caso seu dono perca ou alguém roube”, imagina Thiago Barbosa da Silva Junior, de oito anos, do bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre.
Ele e outras crianças foram convidados pela revista Sextante a fazer desenhos sobre como imaginam que serão os brinquedos e as brincadeiras do futuro. Thiago pensou em um jogo de combate entre os personagens Godzilla e King Kong, que estaria disponível para celulares e videogames.
O boneco Feedback, do desenho Ben 10, e as cartas que criou com base no jogo digital Plants vs. Zombies estão entre seus brinquedos preferidos. Brincar com a mãe e tomar banho de piscina também entram na lista. Mas a pandemia, para Thiago, trouxe a saudade de sair para brincar com outras crianças.
Já para Lívia Fontoura da Silva, de nove anos, do bairro Restinga, em Porto Alegre, a irmã é a principal parceira. “Eu não acho que a pandemia estragou as minhas brincadeiras, porque se falta alguma coisa aqui, a gente sempre inventa, pega uma roupa, pega uma bolsa, alguma coisa e brinca.” Lívia gosta de brincar de detetive e de super-heroína. Também adora bonecas, artesanatos e jogos de celular.
Para o futuro, ela imagina patins voadores, mais brincadeiras de detetive, skates velozes e um aplicativo chamado “brincadeira dos sonhos”.
Junto a brinquedos mais eletrônicos e interativos, Carlos Tilkian, presidente da Estrela, acredita que os tradicionais tendem a permanecer. “Os jogos de tabuleiro tem o fator de integração social, quer de família, quer de amigos, que eles nunca vão perder”, defende.
Criada em 1937, a fábrica de brinquedos Estrela teve de se reinventar ao longo da trajetória para se manter perto do seu público. Entre as novidades, conforme explica o presidente da empresa, estão a Estrela Cultural, editora de livros infantis, e a Estrela Beauty, linha de maquiagens, cosméticos e acessórios específicos para a faixa etária infantil.
Há cerca de sete anos, a empresa também começou a inserir elementos digitais nos brinquedos que fabrica. É o caso do aplicativo do jogo Detetive e da máquina de cartão de crédito e débito do Banco Imobiliário, por exemplo. Além desses produtos, o Jogo da Vida, o boneco Falcon, a linha de bonecas bebês e a de massa de modelar são os mais procurados da companhia hoje, segundo Tilkian.
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Um consumo mediado

“O desejo de consumo é muito pautado também por essa questão de gênero, de como, nos anos 2021, a gente ainda tem uma divisão de gênero muito forte, de ‘isso é coisa de menina’ e ‘isso é coisa de menino’”, destaca a publicitária e pesquisadora da Rede de Pesquisa em Comunicação, Infâncias e Adolescências (Recria) Maria Clara Monteiro.
A percepção veio a partir de entrevistas que fez com 15 crianças de 10 e 11 anos, de classe B, para entender como se dava a relação delas com a publicidade no Youtube. A discussão extrapolou a sua pesquisa de doutorado em Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e foi parar em um livro, com título Crianças e consumo digital: a publicidade de experiência na era dos Youtubers.
Maria Clara acredita que a publicidade de experiência tende a se alastrar no futuro. A prática se refere a ver ou escutar outras pessoas tendo a vivência de um produto — como abrir a embalagem, brincar ou fazer compras —, algo comum em canais de youtubers mirins.
Na mescla de consumo, infância e mundo digital, Monica Fantin, pesquisadora da UFSC, lembra do direito das crianças à proteção, à provisão e à participação. E, para isso, destaca a mediação do adulto: de saber com o que se brinca, de negociar limites, mas também de dar espaço para a criança ser ouvida.
Entre robôs de controle remoto que voam e bonecas que podem ser editadas com o simples apontar de uma caneca, a Turma do Balão Mágico talvez cantaria que o futuro depende de nós, de quem já foi ou ainda é criança, que acredita ou tem esperança e faz tudo para um mundo melhor.
Agora, peço licença pela interrupção, mas me sinto no dever de mostrar essa reportagem para o meu irmão. Será que vai ser aprovada?
