BANCOS DE DNA
CONSIDERAÇÕES ÉTICAS SOBRE O ARMAZENAMENTO DE MATERIAL GENÉTICO
 

Biol. Ursula Matte
Biol. José Roberto Goldim

Uma das principais características da genética médica atual têm sido a crescente utilização da análise direta do material genético, tanto para diagnóstico quanto para pesquisa. Para que muitas dessas análises sejam possíveis é necessário que uma certa quantidade de DNA esteja disponível. A estocagem das amostras de DNA origina os Bancos de Material Genético ou Bancos de DNA. Pode-se diferenciar quatro tipos de Bancos de Material Genético, de acordo com suas características: de pesquisa, de diagnóstico, de dados e potenciais.

Os bancos de pesquisa são formados por DNA obtido de indivíduos ou de famílias extensas, e algumas vezes mesmo por populações inteiras, sabidamente portadoras ou afetadas por uma determinada doença genética. Estes bancos podem ser organizados e mantidos por entidades públicas, como o Banco Nacional de DNA de Pacientes com Câncer de Mama, da FIOCRUZ, ou por empresas privadas, como o Banco Nacional de DNA para Desordens do Sistema Nervoso Central, organizado na Argentina pela empresa francesa Genset.

Os bancos de diagnóstico são obtidos a partir do DNA de pessoas com suspeita de determinada doença e de seus familiares, em geral para fins diagnósticos ou de aconselhamento (detecção de portadores, prognóstico, etc.). Algumas vezes no momento de obtenção da amostra não existe tecnologia disponível para realização dos testes mas os depositantes concordam em manter o material estocado até que seja possível obter alguma informação a partir dele. Além disso, muitas vezes os laboratórios mantém as amostras armazenadas após a realização do teste sem que o paciente tenha conhecimento.

Os bancos de dados de DNA são casos particulares em que as informações genéticas são armazenadas para um determinado fim, usualmente a identificação de um indivíduo por comparação com o padrão armazenado. Estes bancos geralmente tem caráter forense ou militar e várias críticas têm sido feitas a sua utilização, tanto do ponto de vista tecnológico (Scheck, 1994) quanto ético (McEwen e Reilly, 1994a), sendo que um dos principais problemas diz respeito à privacidade e autonomia dos indivíduos analisados.

O quarto tipo de bancos de material genético é formado por qualquer coleção de tecido: blocos de parafina para análise anátomo-patológica, células ou tecidos em cultura, cartões para screening neonatal (teste do pezinho) e bancos de sangue, que são fontes de DNA, e portanto bancos em potencial (Reilly, 1994). Os cartões do teste do pezinho podem ser armazenados por vinte anos e sendo a extração de DNA dos cartões uma técnica bastante simples, vários autores têm se preocupado com a sua utilização como banco de material genético (McEwen e Reilly, 1994b; Zylke, 1992). Estas duas últimas categorias de bancos de DNA representam uma situação peculiar, uma vez que o material genético não é armazenado diretamente, e não serão considerados neste artigo.

A informação contida no DNA é semelhante à informação médica mas muito mais completa. Logo seus resultados devem ser sujeitos aos mesmos princípios do segredo médico mas a preservação destas informações é mais importante do que a habitualmente conferida a outros dados médicos (Annas, 1993). Levando-se em conta a necessidade de considerar questões éticas envolvidas na análise do DNA antes que elas apareçam (Zylke, 1992; Annas, 1993) há a necessidade de uma regulamentação sobre este assunto, para proteger tanto os indivíduos pesquisados quanto os pesquisadores (McEwen e Reilly, 1994b). A lei 8974, de janeiro de 1995, sobre Engenharia Genética não se refere a nada sobre armazenamento e análise de DNA humano. Cuidados a este respeito incluem atenção especial a identificação das amostras, revelação dos resultados (para a família e para terceiros) e especialmente esclarecimento prévio dos indivíduos quanto às questões que podem advir do armazenamento da amostra em um banco de DNA.

Por essas razões o depósito da amostra não pode ser informal (Hanning, e cols. 1993) havendo necessidade de um termo escrito acompanhado de um informe, também por escrito, relatando as condições de sigilo e manutenção da amostra acertadas entre o depositante e a instituição que mantém o banco (Zylke, 1992; Annas, 1993; Harper, 1993). Sugere-se que a obtenção do consentimento de depósito deva ser acompanhada do oferecimento de um serviço de aconselhamento genético para esclarecimento de questões que podem resultar da análise e armazenamento do DNA e não só para para interpretação dos resultados com o depositante (Hanning e cols., 1993).

O banco deve acertar previamente com o depositante detalhes sobre a liberação dos resultados para terceiros, inclusive familiares. Em princípio a liberação dos dados só deve ocorrer com consentimento escrito do depositante e apenas para fins de interesse médico (McEwen e Reilly, 1994b; Ad Hoc Committee on DNA Technology; Harper, 1993), devendo haver garantias quanto ao sigilo dos dados em relação a companhias seguradoras e empregadores. A decisão de liberar ou não as amostras para fins legais ou de investigação de paternidade deve ser decidida pelo banco (McEwen e Reilly, 1994b; Harper, 1993). O depositante deverá ser informado previamente sobre a posição da instituição frente a essas situações. No caso de bancos de diagnóstico a amostra deve ser aceita apenas por solicitação médica e os resultados da análise deverão ser informados para profissionais de saúde e nunca diretamente para o paciente (Ad Hoc Committee on DNA Technology).

A quebra de sigilo para familiares só deve ocorrer com autorização do depositante, ainda que a disposição de contar ou não para os membros da família deva ser discutida antes da realização do teste (Annas, 11993). A revelação das informações para indivíduos saudáveis em risco, familiares de um depositante afetado, deve ser feita acompanhada por aconselhamento genético (Harper, 1993). Nas situações em que é possível ocorrer a identificação de portadores assintomáticos deve-se alertar o depositante sobre esta possibilidade e perguntar se ele deseja ou não ser informado dos resultados. A decisão deve ser individual, mesmo nos casos em que o armazenamento é feito simultaneamente por diversos membros de uma família. Além disso, é preciso alertar para o risco de ser detectado um caso não-paternidade e a posição a ser adotada neste caso (Ad Hoc Committee on DNA Technology). Nesta situação pode-se seguir a determinação de vários comitês internacionais, como o Committee on Assessing Genetic Risks of the Insitute of Medicine, dos EUA, ou o Summary Statement on Ethical Issues in Medical Genetics, da OMS, e não informar a descoberta à família. Esta entretanto não é uma posição unânime. Ross (1996), por exemplo, enumera diversas razões pelas quais esta informação deve ser revelada para ambos os membros do casal. Todos estes problemas não são exclusivos dos bancos de DNA mas inerentes aos testes genéticos baseados na análise de DNA. O armazenamento das amostras em um banco, entretanto, agrava estas questões, exigindo uma reflexão prévia sobre as respostas a serem adotadas.

A longa duração das amostras também pode levar ao surgimento de novas respostas para questões não levantadas quando da sua obtenção (Ad Hoc Committee on DNA Technology). Além disso amostras de sangue obtidas para cuidados médicos de rotina, screening neonatal ou pesquisa, contém um número muito grande de informações que podem ser de interesse imediato ou futuro para os depositantes ou seus familiares. A informação sobre os usos potenciais da amostra deve ser explicada e aceita previamente pelo doador (Hanning e cols., 1993). No caso de novos testes serem possíveis sugere-se que seja obtido um novo consentimento do depositante antes de proceder às novas investigações (Harper, 1993).

O uso de DNA para pesquisa genética, seja de material mantido no banco, seja em tecido estocado, não necessita a autorização do depositante desde que seja mantido anonimato (McEwen e Reilly, 1994b). Isto significa a destruição completa da identificação das amostras. Esta destruição pode ser realizada por solicitação do depositante, que deseja se retirar da pesquisa, ou em casos de falecimento. Muitos autores sugerem a destruição das amostras nestes dois últimos casos porém parece que a destruição total da identificação é preferível uma vez que a amostra poderá ser utilizada para fins de pesquisa, seguindo as mesmas diretrizes válidas para o uso de material biológico descartado.

A pesquisa não anônima só é justificável se relacionada aos objetivos originais de aquisição da amostra (McEwen e Reilly, 1994b). Neste caso, além do termo de consentimento informado da pesquisa há necessidade de um termo para depósito da amostra. Além disso é preciso que seja previamente estabelecido o que fazer caso seja encontrada alguma alteração significativa para o indivíduo (Harper, 1993). Porém, à medida que as técnicas de biologia molecular se expandem, com a descoberta de novos marcadores e associações, a categoria de um indivíduo pode mudar de participante para paciente (Knoppers e Laberge, 1989). O DNA obtido para pesquisa pode ter sua identificação mantida apesar da utilização anônima, tornando-se possível utilizá-lo para detecção de portadores ou diagnóstico pré-natal a pedido dos indivíduos pesquisados (Hanning e cols., 1993). No caso de pesquisa anônima não há possibilidade de comunicação dos resultados para os participantes, mesmo que em tese isso possa vir a beneficiá-los.

Muitas vezes é necessário o intercâmbio de amostras ou dados com outros centros mas ressalta-se que o uso por terceiros de material estocado em um banco, para pesquisa ou não, deve ser subordinado aos interesses do depositante (Hanning e cols., 1993). A responsabilidade de resguardar este interesse é do banco que enviou o material. É preferível que as amostras sejam enviadas de forma anônima e com consentimento escrito dos depositantes. Estes cuidados são necessários uma vez que o DNA é propriedade do depositante e não do banco, que é apenas seu fiel depositário (Ad Hoc Committee on DNA Technology). O indivíduo do qual foi retirada a amostra deve manter controle sobre todos os seus usos, exceto os anônimos (McEwen e Reilly, 1994b). O depositante tem liberdade de retirar seu consentimento a qualquer momento, quando a identificação da amostra deve ser destruída. No caso de menores de idade sugere-se que os mesmos tenham a acesso amostra após completarem 18 anos, sendo informados do contexto do consentimento dado anteriormente e podendo neste momento reavaliar o consentimento fornecido pelos seus responsáveis.

Uma questão importante é o período pelo qual uma amostra deveria ser armazenada após realizados os testes. Algumas amostras não devem ser descartadas pois claramente são fontes potenciais de informação para os familiares (Hanning e cols., 1993). Em outros casos a situação não é tão clara mas pode-se prever que uma amostra ao acaso possa futuramente ser utilizada para realização de algum teste informativo para o indivíduo ou seus familiares. Assim, poderia-se imaginar que qualquer material armazenado em um banco de DNA devesse ser armazenado para sempre. Entretanto é fácil perceber as implicações deste fato, tanto em termos de espaço quanto de custos. Porém quem deve decidir sobre quais amostras serão descartadas ? McEwen e Reilly (1994b) sugerem que deva haver uma justificativa social ou científica para estocagem das amostras.

Finalmente o banco deve manter um manual de procedimentos (Ad Hoc Committee on DNA Technology). Esta prática não visa apenas assegurar o controle de qualidade mas também pode ser útil na abordagem de conflitos éticos. As amostras devem ser guardadas em local seguro e ser codificadas, diminuindo o número de pessoas com acesso à identidade do depositante (Ad Hoc Committee on DNA Technology). Devem haver regulamentos internos quanto ao uso de amostras por terceiros (McEwen e Reilly, 1994b) e os termos de consentimento informado para diagnóstico e pesquisa devem ser mantidos em arquivo até a destruição da amostra. O Colégio Americano de Genética Médica recomenda alguns pontos que devem ser especificados nos termos de consentimento como os usos da amostra, a duração da estocagem e a possibilidade de utilização da amostra para pesquisa anônima, entre outros (American College of Medical Genetics, 1995). Alguns autores desenvolveram modelos de termos de consentimento nos quais pode-se assinalar opções sobre tempo de armazenamento da amostra, conhecimento dos resultados, etc (Knoppers e Laberge, 1989; Gold e cols., 1993).

Um termo de consentimento informado bem elaborado, associado a um aconselhamento genético prévio à análise do material, estabelecendo os possíveis conflitos e as decisões a serem tomadas, poderia evitar o estabelecimento de impasses entre as instituições que analisam e armazenam o material e os proprietários deste mesmo material. Knoppers e Laberge (1989) salientam que é preciso garantir três princípios básicos no que se refere a obtenção de amostras de DNA: individualidade, privacidade e liberdade de escolha. Mesmo que nem sempre as decisões tomadas previamente ao estabelecimento de uma situação complexa sejam mantidas, o respeito a estes três princípios básicos no momento de obtenção da amostra pode evitar futuros conflitos. Na medida em que cada caso apresenta suas particularidades, que devem ser levadas em consideração seria interessante que as instituições que possuem bancos de DNA pudessem contar com Comitês de Bioética aos quais recorrer quando do surgimento de algum conflito de interesse.

Finalizando, podem ser diferenciadas três  situações: bancos utilizados para fins de pesquisa, atividades assistenciais ou de uso comum a ambas.

Os projetos de pesquisa que necessitarem utilizar material genético devem ser obrigatoriamente aprovados por um Comitê de Ética em Pesquisa antes de sua execução. Este projeto deve conter todas as informações necessárias para a plena compreensão da finalidade, procedimentos, modo de armazenamento e, especialmente, as questões referentes a preservação da identidade dos participantes em todos os sentidos, não apenas referindo-se a omissão de nomes e outros dados de identificação pessoal. Todos os eventuais participantes devem autorizar a coleta e armazenamento de suas amostras através de um consentimento informado. A simples utilização do consentimento informado e a preservação do anonimato não garantem a adequação ética do projeto. O mesmo deve ser avaliado em todas as suas dimensões éticas e metodológicas. No caso de aproveitamento de material biológico coletado para fins diagnósticos, e habitualmente descartado, a sua utilização só poderá ser feita com a total descaracterização dos dados pessoais dos pacientes. Esta descaracterização deve impedir definitivamente que os pesquisadores tenham qualquer possibilidade de acesso a identificação destas pessoas. Todos os projetos de pesquisa devem incluir uma garantia de que o material genético utilizado ou extraído será destruído ao final do mesmo. Apenas em situações especiais pode ser solicitada a autorização do Comitê de Ética em Pesquisa para que as mesmas sejam preservadas, especificando-se as garantias e os responsáveis por estas amostras e informações. Como medida de segurança adicional, o Comitê de Ética em Pesquisa poderá solicitar um Termo de Compromisso para Uso de Informações de todos os pesquisadores. Este documento formalizará o conhecimento que cada um deverá ter das normas de preservação das informações com as quais estão lidando.

Os bancos com finalidade assistencial devem preferencialmente ser destruídos ao final da investigação, salvo acordo explícito, prévio a coleta de material biológico, e incluído no consentimento informado a ser obtido com todos os indivíduos envolvidos.

A utilização simultânea de bancos de DNA ou de outros materiais genéticos para fins de assistência e pesquisa deve incorporar os cuidados que ambas situações exigem, em especial a aprovação por um Comitê de Ética em Pesquisa, a garantia da privacidade e a obtenção de consentimento informado de todos os participantes.
 
 

Referências

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Material de Apoio Genética
Página de Abertura Bioética
Texto incluído em 21/07/1998 e atualizado em 26/07/1999
(C)Matte&Goldim/1999