Pesquisa retrata os impactos dos transtornos psiquiátricos em estudantes do ensino fundamental e médio

Saúde Mental | Artigo publicado mostra que há relação direta entre condições mentais não tratadas e problemas educacionais, como evasão escolar e bullying

*Foto: Rochele Zandavalli/Secom

Um estudo desenvolvido por pesquisadores da UFRGS em parceria com outras instituições do país e do exterior aponta que, com melhores condições de tratamento em saúde mental durante a infância e adolescência, seria possível evitar de 5 a 11% dos casos de repetição de ano escolar, bullying e distorção idade-série no Brasil. Realizada a partir de 2010, a pesquisa sobre os impactos causados por problemas de saúde mental na fase inicial da vida acompanhou por três anos mais de 2.500 famílias com estudantes de seis a 14 anos das escolas públicas de Porto Alegre e São Paulo. Os pesquisadores defendem no artigo “The impact of child psychiatric conditions on future educational outcomes among a community cohort in Brazil” (“O impacto das condições psiquiátricas infantis sobre os desfechos educacionais futuros entre uma coorte comunitária no Brasil”, em tradução livre) que, com prevenção e tratamento de condições psiquiátricas, é possível melhorar o desfecho educacional dos alunos, diminuindo o risco de evasão escolar e aumentando as chances de obterem melhores empregos e condições de vida na fase adulta. 

Feito com base em outra pesquisa precedente maior, chamada “Projeto Conexão”, do Instituto Nacional de Psiquiatria para o Desenvolvimento da Infância e Adolescência (INPD), o artigo envolve o fator educacional com relação a habilidades socioemocionais e transtornos mentais, isto é, analisa como elas influenciam na qualidade do aprendizado do aluno. “Fizemos um trabalho mais aplicado, com o objetivo de entender a proporção de eventos escolares negativos, como repetência, desistência escolar e distorção idade-série”, explica Maurício Hoffmann, pós-doutorando da UFRGS e um dos autores do estudo. A meta foi estimar o tamanho do impacto de transtornos mentais não tratados e analisar como diminuir o impacto com diagnósticos mais precisos. 

A pesquisa geral solicitou a participação de cerca de dez mil estudantes e, destes, quase oito mil, entre indivíduos com problemas psicológicos e aqueles que não apresentavam nenhuma das condições que seriam estudadas, aceitaram participar. Desses alunos, foram priorizados 1.500 jovens que possuíam casos de transtornos mentais na família, somados a mil alunos escolhidos de forma aleatória. Dos analisados, 80% permanecem no estudo até hoje. 

É uma pesquisa com grande riqueza de detalhes, caracterizados em termos de sintomas, diagnósticos, teste de QI, neuroimagem de algumas crianças, genética de todos. Tudo para tentar entender o desenvolvimento e proteger contra transtornos mentais.

Maurício Hoffmann

Também professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Maurício salienta que existem condições sociais e biológicas para explicar a diferença na quantidade de determinados transtornos quando se comparam homens e mulheres, com mais casos de déficit de atenção associados ao sexo masculino e de depressão ao feminino, por exemplo. “Existem estudos que mostram as diferenças de traços de personalidade e transtornos mentais em certo grau. Para isso, são utilizadas duas correntes: a seleção social, em que os sexos determinam as diferenças, e a determinação social, que é o que a sociedade imagina como estereótipo”, comenta. 

Os estigmas da sociedade afetam diretamente o âmbito escolar por negarem comportamentos não esperados nos jovens. “Não se espera depressão em um menino, se diz que homem não chora, assim como não se espera que uma menina bata em um colega, não possa ser uma pessoa agressiva”, exemplifica. Também salienta que, caso as ocorrências de traumas na infância feminina, como abuso sexual, não fossem tão maiores se comparados aos dos homens abusados, a porcentagem de diagnósticos depressivos no sexo feminino cairia drasticamente.

No estudo, os pesquisadores demonstraram que os transtornos que mais impactam no processo escolar são os externalizantes, ou seja, aparentes em comportamentos, como o já citado déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e o transtorno de conduta na infância (CD), por exemplo. Estudos internacionais utilizados como base já apontavam o impacto da saúde mental em repetição de ano e abandono escolar. O pesquisador destaca um dos diferenciais do estudo brasileiro: o uso de outros indicadores educacionais, inclusive bastante usados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Com base nos dados de 2014, por exemplo, os pesquisadores estimaram que 154 mil casos de repetição de série, 591 mil casos de distorção idade-série – que é quando um aluno está em um nível escolar abaixo do recomendado para a sua idade, como um jovem de 15 anos no quarto ano, por exemplo -, e 236 mil casos de bullying ocorreram no Brasil devido aos transtornos mentais não prevenidos ou tratados. A estimativa é que de 5 a 11% desses casos poderiam ter sido evitados se os transtornos mentais associados tivessem sido corretamente prevenidos ou tratados. “Estima-se que mais ou menos 20% da população das crianças no Brasil recebem algum tipo de diagnóstico ou tratamento para déficit de atenção e hiperatividade. Se aumentássemos esse índice em 10%, isto é, para 30%, poderíamos evitar que oito mil crianças repetissem de ano no Brasil”, comenta o professor ao relatar seus dados da pesquisa.

O entrevistado alega que o conhecimento retido pelos alunos decaiu, em sua maioria, quando foi estabelecido o ensino remoto em função da pandemia, ao mesmo tempo que a evasão escolar cresceu. Ele ressalta que estudantes que possuem os transtornos estudados no artigo citado não se engajam o suficiente para manter uma rotina de aulas e tarefas de casa, aumentando mais ainda a desigualdade educacional. Alguns pais e mães deixam até mesmo de trabalhar para realizar o acompanhamento necessário ao filho, ocasionando assim uma perda financeira estrutural. A pobreza educacional cresceu, especialmente nas classes econômicas mais baixas, o que torna ainda mais relevante a discussão feita no trabalho.

O cientista destaca a necessidade de se continuar estudando sobre o assunto em populações que morem fora dos grandes centros urbanos, por exemplo. “30% das crianças no país estão em uma escola rural. A gente não sabe se os nossos dados valem para essas crianças também”, analisa o professor.

Investir na saúde é investir na educação

Maurício defende que deveria haver uma maior integração dos serviços de saúde com as escolas, além de maior participação e investimento do Ministério da Saúde dentro do sistema educacional. O professor, mesmo identificando os sintomas nos alunos, não tem a atribuição de tratar o problema. “Não necessariamente as escolas deveriam ter um fluxo de saúde lá dentro, não é isso o que a gente está propondo. Mas [deveriam ter] uma ligação mais direta com o posto de saúde, especialmente na área de infância e adolescência.” É necessário haver um local para o professor direcionar esse aluno, evitando aumentar o problema. 

O pesquisador também destaca que investir na área da saúde afeta positivamente outros setores da sociedade por estarem diretamente conectados, citando como exemplo o Reino Unido, onde o sistema de justiça está investindo para prevenir os casos de transtorno de conduta e diminuir os índices de criminalidade. “Investir em saúde mental poderia prevenir muita coisa. O uso de serviço de saúde em si poderia melhorar a educação e deixar as crianças por mais tempo na escola e aprendendo mais”, diz.

Para Maurício, o ponto central é o entendimento de que o diagnóstico e o tratamento precoce para transtornos mentais são investimentos no futuro, porque a criança fica mais tempo na escola, tem mais chances de chegar ao ensino superior e alcançar um bom emprego no futuro. “Nenhum país resolveu seus problemas de violência ou pobreza sem investir em educação. É algo que traz um altíssimo retorno do investimento realizado, por aumentar a produtividade por meio da diminuição da pobreza educacional”, conclui.