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Inclusão de quilombolas no Censo 2022 é esperança para comunidades

A conquista da visibilidade estatística é um passo importante, mas o desafio agora é saber de que forma o Estado vai agir para garantia de direitos como a posse da terra; Humanista acompanhou visita ao Quilombo dos Alpes.

No alto do Morro dos Alpes, em Porto Alegre (RS), o olhar resistente de Rosângela da Silva Ellias carrega os anos de luta na liderança do Quilombo dos Alpes. Assim Janja, como é conhecida pela comunidade, recebeu o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para marcar simbolicamente o início da coleta do Censo 2022. O Humanista acompanhou o trabalho dos recenseadores.

Pela primeira vez na história dos recenseamentos gerais do Brasil, a população residente em áreas quilombolas está tendo a possibilidade de se autodeclarar ao Censo. A conquista é um passo importante para políticas públicas mais consistentes que atendam aos interesses e demandas dessas comunidades.

Por outro lado, de que forma o Estado vai transformar os dados do Censo 2022 em ações concretas para a garantia de direitos, principalmente no que diz respeito à posse da terra, ainda é uma dúvida a ser respondida. Apesar disso, a visibilidade estatística que virá com o Censo renova a esperança por melhores condições de vida.

O quilombo dos Alpes

O quilombo dos Alpes é uma comunidade centenária, localizada na zona Sul, entre os bairros Glória, Cascata e Teresópolis, a cerca de 30 minutos do Centro Histórico da Capital. A primeira moradora do Quilombo dos Alpes e matriarca da família foi Edwirges Francisca Garcia da Silva, que, por volta de 1920, chegou à área do Quilombo, vinda do município de Charqueadas. “A ‘vó’ vivia com a onça aí…”, conta Janja dando risadas. Edwirges teve cinco filhos e faleceu em 1998, aos 108 anos. 

Janja é neta da primeira moradora do Quilombo dos Alpes e matriarca da família, Edwirges Francisca Garcia da Silva. Foto: Lucas Borghetti/Humanista

Nos anos 2000, conforme descreve o Atlas da presença Quilombola em Porto Alegre, a comunidade iniciou o processo de retomada do território quilombola. As famílias do Quilombo dos Alpes receberam a certificação da Fundação Cultural Palmares em 2005. No mesmo ano, foi construída a primeira sede da associação, e o acesso à luz elétrica chegou até a comunidade.

Janja fala sobre a vida no Quilombo dos Alpes.

Em 2007, começou o processo de regularização fundiária da terra. Mas a nova conquista veio com irreparáveis perdas. No dia 4 de dezembro de 2008, os filhos de Jane da Silva Ellias, Joelma da Silva Ellias e Volmir da Silva Ellias, foram mortos a tiros de arma de fogo, e Janja também foi atingida. 

O atentado direcionado às principais lideranças da comunidade foi realizado por um vizinho e os motivos estão associados à disputa pela terra. Em 2010, o Tribunal do Júri de Porto Alegre condenou o autor do crime a 39 anos e seis meses de prisão em regime fechado por homicídio e tentativa de homicídio.

Porto Alegre é a capital com maior número de quilombos urbanos

A inclusão das comunidades quilombolas é uma iniciativa extremamente importante para as políticas públicas direcionadas à população quilombola no nosso país, na opinião da professora Cláudia Luísa Zeferino Pires, do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Ela entende que a oportunidade de conhecer esses territórios por meio do Censo está relacionada com a principal dificuldade das comunidades, a garantia da terra, através da regularização fundiária.

Como o estado, reconhecendo os quilombos no Censo, vai agir em relação a essa pauta é uma questão a ser respondida. “A grande pergunta é: depois que o estado entende a necessidade e a importância do Censo, como ele vai responder às reais necessidades da população?”, questiona a professora da UFRGS. 

Junto com a colega Lara Machado Bitencourt, doutoranda do Programa de Pós Graduação em Geografia, Claudia organizou o Atlas da presença quilombola em Porto Alegre. Publicado em 2021, o atlas é resultado de um levantamento dos onze quilombos urbanos de Porto Alegre. “Esse levantamento traz um histórico dessas comunidades através das cartografias. A gente faz um levantamento cartográfico da necessidade de afirmação territorial dessas comunidades, porque a necessidade de pensar políticas públicas, de demandas para essas comunidades é urgente.”

Porto Alegre tem onze comunidades quilombolas auto-reconhecidas. É a cidade com maior número de quilombos urbanos entre as capitais brasileiras. Em entrevista ao Humanista, a professora Cláudia Luísa Zeferino Pires fala a respeito. 

Carência de dados dificulta implementação de políticas públicas

As reuniões de planejamento do Censo em Mostardas (RS), assim como nos demais municípios, contaram com a presença das comunidades quilombolas, representadas por suas lideranças. Jorge Amaro, eleito vereador do município em 2020, também esteve presente ao longo da preparação para pesquisa de campo, auxiliou o trabalho do IBGE no município e mediou a relação com as comunidades locais. Jorge entende que a inclusão das comunidades quilombolas ajudará na visibilidade destes grupos em âmbito nacional e, principalmente, no Rio Grande do Sul. “Quando você vai pro resto do país e fala que aqui tem quilombo, ninguém acredita.”

Jorge fala sobre a visibilidade das comunidades quilombolas no Rio Grande do Sul.

Jorge cresceu na comunidade quilombola dos Teixeiras, em Mostardas. Quando tinha cerca de cinco anos, o seu avô morreu, o que levou a família a se mudar para a periferia do município e se distanciar da relação com a comunidade. Aos 18 anos, Jorge saiu da cidade para estudar e ficou 20 anos fora da terra natal. Ao longo desse período, formou-se em técnico agrícola, biologia, fez mestrado em educação e doutorado em políticas públicas. Passou pelo serviço público estadual e voltou para Mostardas em 2017, onde atuou como secretário municipal. Em 2020, concorreu a vereador e foi eleito. Desde então, representa principalmente a pauta das comunidades quilombolas.

O vereador observa uma dificuldade enorme de pensar políticas públicas para as comunidades quilombolas por conta da ausência de informações que possam subsidiar essas políticas. “Temos aqui três comunidades, a única informação que a gente tem das comunidades são dados da Emater ou dados das associações, por exemplo, o Beco dos Colodianos tem trinta e poucas famílias, Teixeiras tem 80 e poucas e Casca também. Fora isso, a gente não tem nenhuma informação precisa das comunidades. Isso, a gente percebe em toda a região do litoral médio.”, destaca. 

Ao todo, são nove comunidades em municípios da região que fica entre Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico. Capivari do sul (1),  Palmares do Sul (1), Tavares (3) e São José do Norte (1). Além de Mostardas, que conta com três comunidades. Todas são reconhecidas pela Fundação Palmares, sendo que o quilombo Casca, em Mostardas, é o que está mais avançado no processo de titulação com o título da posse da terra.

“Essa conquista que as comunidades quilombola garantiram no Censo, digo uma conquista porque foi uma luta de muitas e muitas comunidades de todo o Brasil, da Conaq, enfim, de entidades de todo o país, traz uma esperança muito grande de que, a partir desse Censo, a gente consiga, principalmente, ter visibilidade, que a gente consiga se enxergar, porque até então a gente não se enxerga”, relata Jorge. 

O vereador reforça que do ponto de vista de política pública, é imprescindível o uso de dados oficiais, isto é, informações legitimadas pelo estado. “A  gente espera que com o Censo a gente consiga ter isso e que ele possa ser um instrumento para a gente avançar tanto na oferta de políticas públicas quanto na pauta das comunidades quilombolas do país.”, conclui.

Dia da Mobilização do Censo Quilombola

Participaram do Dia de Mobilização do Censo Quilombola, em 17 de agosto, representantes da luta quilombola no Brasil. Roberto Potácio, Coordenador Estadual e membro fundador da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas), confirma que partiu da Coordenação Nacional reivindicar junto ao IBGE que o censo fosse realizado nessas comunidades.

“O país se vê como sujeito de pensar politicas publicas para todos, de forma plena, dando visibilidade a esse povo que busca o lugar ao sol há mais de 380 anos. Não é à toa, que na linguagem técnica e acadêmica, remanescente significa resto. Somos esse povo que sobrou dos nossos ancestrais que aqui chegaram para produzir esse chão, tornar esse chão fértil, trazendo junto nessa bagagem vários saberes, conhecimentos e uma vasta cultura; povo que está, ainda nos dias de hoje, em busca de melhores condições de vida”, declara Potácio.

Roberto Potácio fez parte do Grupo Interministerial que participou do desenvolvimento do Decreto Nº 4.887, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Foto: Lucas Borghetti/Humanista

Teresinha Aparecida Lopes Paim é  Presidente da FACQ/RS (Federação das Associações das Comunidades Quilombolas do RS) e veio do Quilombo Rincão dos Martimianos, em Restinga Seca, para participar do Dia da Mobilização do Censo Quilombola em Porto Alegre. Assim como outras lideranças quilombolas, Teresinha ajudou os recenseadores no acesso ao território durante os testes para o Censo. 

Em 2018, o IBGE iniciou os testes do Censo, que seria realizado em 2020, mas, por conta da pandemia de Covid-19, acabou sendo adiado para 2021, e por falta de orçamento foi transferido para 2022.

“Em 2019, fizemos testes específicos no país. O Rio Grande do Sul fez o teste dos quilombolas no município de Porto Alegre e no município de Restinga Seca. Nós ficamos um mês em quatro ou cinco comunidades, fazendo e testando o questionário. A pergunta é muito simples para os quilombolas. São duas perguntas, na realidade. A primeira, é assim: ‘você se considera quilombola? Sim ou não.’ Sendo ‘sim’, abre a segunda pergunta: ‘a qual comunidade você pertence’”, afirma Cláudio Sant’Anna, coordenador técnico do IBGE-UE/RS.

Em relação aos desafios para as comunidades a partir de agora, a Presidente da FACQ/RS lembra da luta pelo direito da terra. “Sem a terra, a gente não planta, não tem sobrevivência para alimentação. Porque a gente, quilombola, planta bastante. É muito também a preservadora das águas, das nascentes, preservadora do meio ambiente”, afirma. 

Ivonete Carvalho, remanescente do Quilombo Vó Fermina e Vó Maria Eulina, em Restinga Seca-RS, falou ao Humanista sobre a emoção de estar presente no começo simbólico da coleta do Censo e ser uma das mulheres que iniciaram o movimento quilombola há mais de 20 anos. 

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