Profa. Dra. Letícia Becker Vieira

       Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), as evidências disponíveis até o momento indicam que o distanciamento social é uma das principais formas de combate a disseminação da COVID-19, qual foi declarada pandemia em 23 de janeiro de 2020 e já se caracteriza por uma crise com proporções catastróficas que supera 1,2 milhões de infectados e mais de 65 mil mortes (dados de 05 de abril de 2020).

       O distanciamento social significa ficar em casa sempre que possível, evitar saídas desnecessárias e locais com aglomerações. Essa medida, que visa conter a propagação do SARSCOv-2, vírus com alto grau de contágio, tem revelado outra faceta de um problema social e de saúde pública, a exposição de mulheres em situação de violência doméstica a conviver mais tempo do que o habitual com o agressor em nome do distanciamento social e que também pode lhe custar vida. A prolongada convivência familiar imposta neste período pode intensificar os conflitos decorrentes de violência doméstica já instalados nas relações.  Segundo a promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Fabíola Sucasas Negrão Covas, o isolamento é utilizado pelos agressores como uma forma de controle psicológico, a fim de ampliar e manter seu poder sob as mulheres. Além disso, considera-se como fator de risco pois o distanciamento reduz o contato social da mulher sua rede de apoio (familiares, amigos, colegas de trabalho) o que reduz as possibilidades dessa mulher buscar ajuda, denunciar e criar uma rede de apoio para romper com o ciclo da violência.

      Outros agravantes que também podem intensificar os conflitos dizem respeito a situação econômica das mulheres e companheiros (as mulheres brasileiras têm menores rendimentos e estão mais sujeitas à informalidade do que homens, a taxa de participação do segmento feminino no mercado de trabalho no ano de 2018 foi de 52,9% enquanto a dos homens foi de 72% – IBGE,2019), preocupação com os filhos com o fechamento das escolas, uso abusivo de álcool e outras substâncias psicoativas pelo companheiro. Trata-se pois, de olhar com especial atenção para o aumento da violência doméstica contra as mulheres.

       A violência é um fenômeno presente no cotidiano das mulheres brasileiras há tempos. De acordo com o art. 5º da Lei Maria da Penha, violência doméstica e familiar contra a mulher é “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (Brasil, 2006). É decorrente da desigualdade nas relações de poder entre homens e mulheres, assim como, a discriminação de gênero ainda presente tanto na sociedade como na família. Atinge mulheres de diferentes credos, estados civis, níveis de escolaridade, em nações que se encontram em processos distintos de desenvolvimento socioeconômico (Brasil, 2011).

          Segundo a Organização Mundial da Saúde –OMS  1 em cada 3 mulheres em todo o mundo sofreram situações de violência física ou sexual por parceiro intimo ou não (OMS, 2013). O Brasil também apresenta altos índices de violência contra as mulheres. Uma pesquisa realizada, em 2013, pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência Contra Mulher, constatou que aproximadamente um terço (33%) das mulheres brasileiras entrevistadas já sofreram algum tipo de violência, uma em cada 4 (24%) foram ameaçadas com armas, 22% sofreram agressões físicas, 13% vivenciaram violência sexual (estupro ou abuso) no âmbito conjugal, 27% sofreram violência psicológica e 11% relataram já ter sofrido assédio sexual.  Sobre as agressões físicas, a mesma pesquisa, revela que uma em cada dez mulheres brasileiras já foi espancada pelo menos uma vez na vida, 16% sofreram xingamentos e ofensas recorrentes e 15% tiveram suas vidas controladas sobre onde iriam e com quem sairiam (BRASIL, 2013).

          Outros estudos realizados no Brasil também indicam o parceiro íntimo, os maridos, companheiros, namorados e ex-parceiros como os principais agressores das mulheres (88% dos casos). Fica evidente que a maioria dessas mulheres sofre agressão por homens sem laços consanguíneos, com os quais possuíam convivência íntima. O que implica na ocorrência de situações de violência e dos homicídios no domicílio das mulheres (IPEA, 2013; WAISELFISZ, 2015; BRASIL, 2015). Local esse que deveria ser o lugar mais seguro para a mulher neste período de quarentena!

          Quando se trata dos feminicídios, que são mortes de mulheres decorrentes de conflitos de gênero, em um ranking a partir do qual foram apresentados dados de 83 países, disponibilizados entre 2010 e 2013, o Brasil ocupa a 5ª posição, (WAISELFISZ, 2015), isto que representa a expressão máxima da violência contra as mulheres. Conforme, ainda, dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) entre 2007 e 2017 houve um aumento de 20,7% na taxa nacional de homicídios de mulheres, ou seja passou de 3,9 para 4,7 mulheres assassinadas para cada 100 mil mulheres (IPEA, 2019).

          É muito importante destacar que quando se fala de violência contra as mulheres, é fundamental pensar a intersecção do gênero com outros marcadores, como raça/cor/etnia, por exemplo. Quando observamos os dados é possível identificar que as mulheres negras são as principais vítimas de feminicídios, na maior parte das regiões brasileiras. Quando se trata de mulheres negras e jovens, o risco de morrer é maior comparado às mulheres brancas (DANTAS, et al.; MENEGHEL, et al., 2017). O Atlas da Violência de 2018, também destaca este recorte étnico/racial: a taxa de feminicídio em 2016 entre as mulheres negras foi de 5,3 mortes por 100 mil habitantes, enquanto que as demais mulheres a taxa foi de 3,1 a cada 100 mil habitantes; essa é uma diferença 71% (IPEA, 2019). As mulheres mais pobres, e especialmente negras vivenciam altas taxas de violação de seus direitos: sofrem discriminações e não desfrutam das mesmas oportunidades de escolarização, emprego, acesso aos diferentes serviços, somado ao isolamento social e falta de apoio.

           Retomando o contexto da pandemia o distanciamento isolamento não é justificativa para agressão contra a mulher, no entanto compreende-se que se os relacionamentos já são abusivos e se o ciclo da violência já foi iniciado nesta relação os conflitos podem ganhar novas proporções. A agressão depende do poder e do controle do agressor sobre a mulher e em confinamento esses abusadores encontram ambiente mais favorável para exercer seu poder de intimidação. Além de estarem na linha de frente da resposta, o distanciamento isolamento, o fechamento das escolas e a redução das atividades econômicas são alguns dos fatores que afetam as mulheres de forma desproporcional e causam sobrecarga das tarefas doméstica historicamente desempenadas pelas mulheres de modo desigual.

         Segundo a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), foram 3.303 ligações recebidas e 978 denúncias registradas entre 17 e 25 do mês de março de 2020, apontando que as ligações para canal de denúncia de violência doméstica subiram 9 % neste período de distanciamento social (O Globo, 2020). Dados da ONG chinesa Weiping mostram que a quarentena na China, para a disseminação do covid-19, fez com que as denúncias de violência doméstica triplicassem, em apenas dois meses, cenário similar ao Brasil, o que demonstra que a violência doméstica é um problema global.

           No dia 20 de março de 2020 apenas algumas semanas após o surgimento da pandemia a Organização das Nações Unidas para as Mulheres (ONU Mulheres) divulgou documento no qual pontua possíveis impactos para as mulheres da crise gerada pelo COVID-19. Esse informativo, que foca nas mulheres da América Latina e do Caribe, a organização alerta para o risco de aumento da violência contra mulheres e meninas especialmente a doméstica, no contexto de distanciamento social necessário para conter o avanço do vírus. Um dos principais motivos apontados por especialistas para que mulheres continuem atreladas ao parceiro agressor, a dificuldade para se manter financeiramente também foi citada no documento. A organização ainda lembra que a redução da atividade econômica em razão da pandemia afeta, em primeira instância, trabalhadoras informais que perdem seus meios de sustento quase que imediatamente. “Os riscos aumentam devido ao aumento das tensões em casa, e também podem aumentar o isolamento das mulheres”, afirma o documento. “As sobreviventes da violência podem enfrentar obstáculos adicionais para fugir de situações violentas ou acessar ordens de proteção que salvam vidas e/ou serviços essenciais devido a fatores como restrições ao movimento em quarentena”, pondera a ONU Mulheres.

          No documento, a ONU Mulheres compartilha uma série de recomendações para minimizar os efeitos da pandemia em relação às mulheres. Um dos pontos refere-se à necessidade de garantir o acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo a atenção pré-natal e pós-natal.

           Assim, garantir a continuidade dos serviços essenciais para responder à violência contra as mulheres, alocar recursos para garantir as necessidades imediatas das mulheres e aumentar o apoio às organizações de mulheres para fornecer serviços de apoio nos níveis local e territorial são algumas das recomendações da ONU Mulheres, que podem ser encontradas no documento “GÊNERO E COVID-19 NA AMÉRICA LATINA E NO CARIBE: DIMENSÕES DE GÊNERO NA RESPOSTA”.

Nesse sentido, a orientação para mulheres que passam por situações de violência doméstica segue a mesma durante o distanciamento social: procurar ajuda.

       Procurar ajuda em Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher

          No caso de medida protetiva para a mulher, o agressor deve deixar a casa, mesmo com o isolamento domiciliar. É importante que a mulher mantenha contato com familiares e amigos para que possam ter conhecimento da situação e poderem também ser apoio neste momento.

          Além disso, quem ouvir, ou ver sinais e/ou comportamentos relacionados à violência perto de sua casa, deve denunciar, auxilie a retirada de vítimas dessa situação. Uma rede de apoio forte e solidária é fundamental para combater a violência doméstica, que vem dando sinais de aumento durante o período de confinamento, tanto no Brasil como ao redor do mundo.

No site da THEMIS RS – Gênero, Justiça e Direitos Humanos (http://themis.org.br/saiba-como-procurar-ajuda-em-caso-de-violencia-domestica-em-tempos-de-isolamento-social/) é possível encontrar mais informações sobre canais de ajuda e denúncia:

ONDE PROCURAR AJUDA EM PORTO ALEGRE

Alô Defensoria: (51) 3225-0777

Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH): (51) 3221-5503

 

ONDE PROCURAR AJUDA NO INTERIOR DO ESTADO

Pelos telefones disponíveis em www.defensoria.rs.def.br/fones-DPE

 

OPÇÕES ALÉM DA DEFENSORIA PÚBLICA

Delegacia de Polícia online (www.delegaciaonline.rs.gov.br) – Para casos que não necessitem de medidas protetivas de urgência, incluindo descumprimento de medidas protetivas.

Delegacia mais próxima (registro presencial) – Para casos de crimes graves e estupro e havendo necessidade de medidas protetivas de urgência.

WhatsApp da Polícia Civil – (51) 98444-0606

Ligue 180 – Canal gratuito e confidencial para fazer denúncias. Também recebe reclamações sobre os serviços da rede de atendimento à mulher e orienta as mulheres sobre seus direitos e sobre a legislação vigente, encaminhando-as para outros serviços quando necessário. Funciona 24 horas por dia, todos os dias, inclusive finais de semanas e feriados. Pode ser acionado de qualquer lugar do Brasil e de vários países do Exterior.

Sugestão de podcast para aprofundamento do tema:

Referências:

BRASIL. Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. Brasília: Ministério da Saúde, 2011.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Comissões. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Brasília: Ministério da Saúde, 2013.

BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Balanço Ligue 180: uma década de conquistas. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2015.

DANTAS, G. S. V.; SILVA, P. L.; SILVA, J. K.; RIOS, M. A. Caracterização dos casos de violência física contra mulheres notificados na Bahia. Arq. Ciênc. Saúde, v. 24, n. 4, p. 63-68, out./dez. 2017. Disponível em: <http://www.cienciasdasaude.famerp.br/index.php/racs/article/view/878/731>. Acesso em: 30 de mar 2020.

IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil. Brasília, 2013. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&id=19873 Acesso em:

30 de mar. 2020.

 IPEA. Atlas da Violência 2019. Org. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 2019.

MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS HUMANOS. Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Disponível em: https://oglobo.globo.com/celina/ligacoes-para-canal-de-denuncia-de-violencia-domestica-sobem-85-na-quarentena-24333915?utm_source=Facebook&fbclid=IwAR02nMygyG87IYt0Vf7WNxkZE1Buw8ZTYl7pNWj_fT_a3tIIH_zeeFr1SIE

MENEGHEL, S. N.; ROSA, B. A. R.; CECCON, R. F.; HIRAKATA, V. N.; DANILEVICS, I. M. Feminicídios: estudo em capitais e municípios brasileiros de grande porte populacional. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 9, p. 2963-2970, 2017. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csc/v22n9/1413-8123-csc-22-09-2963.pdf>. Acesso em: 30 mar 2020.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and nonpartner sexual violence. Suiça: OMS, 2013.

ONU MULHERES. Gênero e covid-19 na América Latina e no Caribe: dimensões de gênero na resposta. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/03/ONU-MULHERES-COVID19_LAC.pdf.

WAISELFISZ, J. J. Mapa da Violência 2015. Atualização: Homicídios de Mulheres

no Brasil. CEBELA. FLASCO/Brasil. 2015.