Morte de trabalhadora doméstica por coronavírus escancara falta de políticas para proteger a classe

Trabalho | Apesar de avanços na legislação, a categoria segue exposta a maior vulnerabilidade, especialmente no caso das diaristas

*Foto de capa: Flávio Dutra/JU

O teu chefe teve o diagnóstico para coronavírus confirmado, não te contou e ainda solicitou uma reunião presencial. O quão absurdo isso te parece? A primeira pessoa a morrer por causa do Covid-19 no estado do Rio de Janeiro foi uma trabalhadora doméstica que não foi dispensada pela empregadora com a doença confirmada. Mesmo após o caso, outros “patrões” cujos testes para coronavírus deram positivo não liberaram as “empregadas”, situação que escancara o quanto a classe está vulnerável à pandemia e precisa de políticas públicas de proteção.

Trabalhadora doméstica desde os 13 anos, Cleonice Gonçalves ingressou na profissão que mais emprega mulheres no Brasil porque precisava complementar a renda da família. “Era muito batalhadora, sempre procurou ajudar todo mundo”, afirmou seu sobrinho, Lucas Gonçalves, ao programa Fantástico exibido no último domingo. Ela cozinhava há vinte anos para uma família que mora no Leblon quando passou mal. O bairro carioca tem o metro quadrado mais caro do Brasil, de R$ 21 mil, segundo levantamento divulgado em 2017 pela revista Época Negócios. A trabalhadora foi internada no dia 16 de março em um hospital público do município de Miguel Pereira, onde morava com o filho, a duas horas da capital.

Um dia depois da internação, a empregadora, que havia voltado da Itália, onde passou o Carnaval, comunicou à família de Cleonice que estava com Covid-19. Sebastião Barbosa, diretor médico do Hospital Municipal Luiz Gonzaga que atendeu a trabalhadora doméstica, afirmou à Agência Pública que a patroa já estava de quarentena, mas que a confirmação de infecção pelo coronavírus só foi comunicada no dia 17, quando Cleonice morreu. “Se as informações tivessem chegado mais cedo, talvez a gente tivesse como mudar a história clínica”, afirmou o médico à Pública. Isso porque em lugar de seguir o protocolo para suspeitas de coronavírus – encaminhamento direto para a intubação – foram feitos exames de rotina que chegaram a detectar uma infecção urinária.

O caso ganhou repercussão internacional por ter sido noticiado pela agência Reuters e republicado por diversos veículos, entre eles o The New York Times. O título que a imprensa internacional deu à reportagem foi “A Brazilian woman caught coronavirus on vacation. Her maid is now dead” (“Uma mulher brasileira pegou coronavírus nas férias. A ‘empregada’ dela agora está morta”, em tradução livre). Antes disso, no dia 7, o jornal Correio 24 Horas, da Bahia, havia noticiado que a segunda pessoa com diagnóstico confirmado de Covid-19 no estado foi uma trabalhadora doméstica, no município de Feira de Santana, a uma hora e meia de Salvador. A primeira foi a empregadora, que havia voltado da Itália. Na sequência, três familiares da trabalhadora doméstica também foram diagnosticados com o vírus.

Com herança escravocrata, trabalho doméstico enfrenta maior vulnerabilidade

A pandemia de coronavírus tem escancarado as diversas desigualdades brasileiras e mostrado que aqui a corda segue arrebentando no lado mais fraco. “Isso ocorre porque o mercado de trabalho no Brasil é muito desigual; existem os trabalhadores que são mais protegidos e os que são menos protegidos. O emprego doméstico é atingido de uma forma particular, pois as questões de gênero, raça e classe se comunicam, criando uma realidade verdadeiramente dramática em um contexto de pandemia. É uma categoria composta majoritariamente por mulheres negras, moradoras de periferias, que convivem com o preconceito racial e com a baixa renda. Por isso, estão mais expostas às vulnerabilidades sociais”, constata o professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFRGS Fernando Coutinho Cotanda, também integrante do grupo de pesquisa “Processos de Socialização, Trabalho e Crítica Social”.

Assessora jurídica da organização da sociedade civil Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, Aretha de Azevedo Claudiano dos Santos afirma que é preciso reconhecer o trabalho doméstico no Brasil como fruto de uma herança escravocrata. “Várias pesquisas sociológicas e antropológicas sobre trabalho doméstico no Brasil revelam que os empregadores entendem as trabalhadoras domésticas como se fossem ‘da família’ e, por isso, não cumprem com uma série de deveres e direitos trabalhistas que essas mulheres teriam”, afirma.

Além disso, avalia Fernando, o atual cenário de precarização das relações de trabalho contribui ainda mais para que a pandemia afete a classe de forma mais severa. Dados do IGBE de 2018, divulgados em fevereiro deste ano, mostraram que o número de trabalhadoras domésticas sem carteira assinada foi o maior desde 2012. 

“Nos últimos anos, estivemos caminhando na contramão da proteção social. A Reforma Trabalhista e as novas leis sobre terceirização são exemplos, não exclusivos, de uma nova realidade que fragiliza o trabalho. Em um momento como o que estamos passando, isso fica evidente. A precarização do trabalho jamais construirá uma sociedade justa e emancipadora”

Fernando Coutinho Cotanda
Diaristas são as mais desamparadas da categoria

Dentro da categoria das trabalhadoras domésticas, as diaristas são as que estão mais desassistidas pelas políticas públicas. Isso porque, embora a classe tenha conquistado avanços legais – como a Emenda Constitucional 72 de 2013 e a Lei Complementar 150 de 2015, ambas desdobramentos da famosa PEC das Domésticas, que asseguraram às mensalistas os mesmos direitos de qualquer outro trabalhador –, as diaristas seguem desamparadas juridicamente. “Esses avanços legislativos deixaram escanteadas as diaristas, que são as trabalhadoras domésticas que fazem serviços na casa de uma pessoa até duas vezes por semana. A partir de três dias por semana, são consideradas mensalistas e, nesse caso, podem exigir mais direitos”, explica Aretha.

A lacuna nessas normas, conforme a assessora jurídica, foi um “jeito” que os legisladores acharam “para não onerar os empregadores das diaristas frente aos direitos trabalhistas das empregadas domésticas”. “Temos uma cultura muito forte não só no Brasil, mas também no resto do mundo, de não regularização das mulheres que fazem trabalho doméstico, e as diaristas são as mais vulneráveis”, afirma.

Aretha argumenta que os empregadores deveriam remunerar as diaristas por RPCI (Recibo de Pagamento Contribuinte Individual, também chamado de RPA, Recibo de Pagamento a Autônomo), pagar o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e fazer o recolhimento do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). “Só que a gente sabe que isso não acontece. Elas chegam, fazem a faxina, recebem o dinheiro e vão embora. Na prática, se elas não fizerem a contribuição para o INSS de forma autônoma, não estarão cobertas por nenhum direito trabalhista ou previdenciário que conseguimos garantir às trabalhadoras domésticas nas últimas legislações”, explica. Por isso, a assessora jurídica orienta para que todas contribuam de alguma forma com a Previdência Social.

Para ajudar essas trabalhadoras nesse período, o Movimento de Mulheres Olga Benario (gestor da casa de acolhimento e abrigamento de mulheres vítimas de violência doméstica Mirabal, localizada em Porto Alegre), lançou a Rede de Apoio a Diaristas, no dia 19. O objetivo é arrecadar doações para a criação de um “Fundo Solidário para Trabalhadoras Desempregadas e Autônomas”. São aceitas contribuições a partir de R$ 1, que podem ser feitas pelo site Apoia.se. “Sou diarista e a situação no momento é: fomos dispensadas, somos autônomas e não temos renda. Assim como eu, outras mães estão na mesma situação”, relatou a coordenadora da Casa Mulheres Mirabal, Lilian de Oliveira, no vídeo de divulgação da campanha.

Veja o vídeo completo:

MP de Bolsonaro precariza trabalho no período de calamidade

Na contramão da orientação da Organização das Nações Unidas de apoiar as classes mais vulneráveis durante a pandemia, medida adotada pelo governo britânico, por exemplo, o governo federal publicou no dia 22, domingo, a Medida Provisória 927 de 2020, que flexibiliza ainda mais as relações de trabalho. O texto autorizava, por meio do Artigo 18, que os contratos de trabalho fossem suspensos por até quatro meses sem necessidade de acordo ou convenção coletiva. Amplamente criticado por centrais sindicais, instituições como a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e pela população nas redes sociais, o artigo foi revogado em uma outra medida provisória, a MP 928 de 2020, publicada no dia 23, segunda-feira. No entanto, várias outras mudanças da MP 927 seguem valendo.

Um dos mais problemáticos é o Artigo 2, que autoriza os empregadores a firmarem, durante esse estado de calamidade pública, acordos individuais com os trabalhadores, que terão “preponderância sobre os demais instrumentos normativos legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição”, segundo a MP. “A função primária de uma relação de trabalho é que o empregador é a parte hipersuficiente e o trabalhador é a parte hipossuficiente, por isso existem leis de proteção ao trabalhador. Então, como vou negociar se posso ser mandado embora? É uma imposição, ainda mais nesse contexto de desemprego em massa. Vai ter gente suplicando migalhas”, argumenta Aretha. 

Na prática, a MP diz que todos os acordos são válidos, desde que não contrariem a constituição. Ou seja: todas as leis trabalhistas que não tenham força constitucional podem ser modificadas durante um período de quatro meses, por causa da pandemia.

“Posso pegar o máximo da vulnerabilidade que o empregado tem e jogar no contrato, dar apenas o mínimo do mínimo do mínimo. E a pessoa vai dizer que sim. É uma política que acaba com os direitos trabalhistas”

Aretha de Azevedo Claudiano dos Santos

Solidão fará trabalhadoras domésticas serem mais afetadas pela MP

Conforme Aretha, o conceito de “solidão das trabalhadoras domésticas”, o fato delas atuarem sozinhas, sem colegas para falar sobre os direitos, fará com que a MP 927 seja mais cruel com a categoria. Para quem atua em uma empresa com mais de um funcionário, por exemplo, os trabalhadores podem conversar entre eles sobre os contratos e possíveis reivindicações. 

Além da MP, que permite acordos apenas com os direitos constitucionais, os contratos entre as trabalhadoras domésticas e os empregados são individuais, sem participação dos sindicatos, o que as deixa mais vulneráveis às precarizações. “Esse isolamento das trabalhadoras domésticas causa muito prejuízo. São poucos os espaços onde elas podem compartir. Além disso, elas costumam ter tripla jornada de trabalho, não tendo tempo para atuar politicamente dentro dos sindicatos, que são espaços de coletividade muito importantes”, explica a assessora jurídica. 

Por isso, para orientar trabalhadoras domésticas sobre direitos trabalhistas, a Themis mantém atualizado o aplicativo Laudelina, que também permite a formação de rede.  “Nesse momento, é muito importante que essas profissionais se mantenham em coletividade e procurem espaços onde as inquietações delas são ouvidas, como o sindicato do território, a Fenatrad e o Laudelina”, completa a assessora jurídica.

Entidades da categoria pediram dispensa antes da morte de Cleonice

Antes da morte de Cleonice, a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e a Themis já haviam se unido para lançar uma campanha de conscientização: pediram em nota que os empregadores liberassem sem desconto na remuneração as trabalhadoras domésticas e diaristas até passar o período com risco de contaminação com o coronavírus. “Elas estão em uma situação de especial vulnerabilidade em relação ao Covid-19. Embora a exposição de qualquer pessoa à pandemia seja um risco, a categoria conta com agravantes, como o uso de transporte público”, afirmaram no documento divulgado no dia 16.

A presidente da Fenatrad, Luiza Batista, chegou a fazer um apelo em vídeo sobre isso. “Os empregadores, como cidadãos e cidadãs que são, têm responsabilidade social neste momento”, afirmou.

Assista ao depoimento completo:

No dia 17, o Ministério Público do Trabalho (MPT) emitiu uma nota técnica afirmando que as trabalhadoras domésticas não poderiam ser demitidas caso faltassem ao serviço por causa do coronavírus. “Considerando-se a situação excepcional e motivo de força maior em razão da pandemia do coronavírus, as ausências ao trabalho ou a adaptação da prestação de serviços por força dos encargos familiares deverão ser estendidas às trabalhadoras e aos trabalhadores domésticos, bem como não poderão ser consideradas como justa motivação para sanção disciplinar ou para o término de uma relação de emprego, podendo configurar atos discriminatórios”, informa o documento, que também pede a dispensa dessas profissionais.

Embora não tenha poder de lei, ou seja, não possa ser levada à Justiça como garantia de direito, a nota do MPT precisa ser respeitada pelos empregadores. Caso contrário, as trabalhadoras domésticas podem fazer denúncias ao órgão, que deve fiscalizar e, se for o caso, intervir.

Filhos clamam aos “patrões” por liberação

Com a morte de Cleonice, filhos e familiares de trabalhadoras domésticas lançaram o abaixo-assinado online “Quarentena Remunerada Já Para Domésticas e Diaristas!”, que já recebeu mais de 25 mil assinaturas. “Ao constatarmos que nossas familiares que são empregadas domésticas e diaristas continuam trabalhando normalmente, salientamos a EMERGÊNCIA de atender à quarentena estipulada pelas autoridades e reivindicamos a DISPENSA REMUNERADA das empregadas domésticas e diaristas pelos empregadores para que, assim, cumpram com as exigências de precaução no combate à propagação contagiosa do COVID-19”, afirmaram.

O abaixo-assinado reúne depoimentos de familiares de trabalhadoras de quatro estados, entre eles Marcelo Rocha, de São Paulo. “Minha mãe trabalha desde os seis anos de idade como doméstica e diarista. Muitas vezes vi ela ir trabalhar doente para manter seus compromissos. Mesmo falando sobre os riscos do Corona, ela não tem como faltar por conta do risco de ser demitida”, relatou. Outras informações sobre a campanha podem ser acessadas no perfil do Instagram @pelavidadenossasmaes.

Veja outros depoimentos de familiares:

No mesmo sentido, o Intercept publicou o texto “Patrões, liberem nossas mães. Mas continuem pagando”, assinado por Ana Paula Carvalho e Bruno Sousa, netos, filhos e sobrinhos de trabalhadoras domésticas. “O contágio pode afetar gente de diferentes classes sociais, mas nem todos terão o mesmo acesso a tratamento médico. Enquanto empregados morrem, seus patrões infectados seguem vivos. E não é difícil adivinhar o porquê: muitas mal têm acesso à água potável para consumo, que dirá para lavar as mãos regularmente. Além disso, as condições exigentes de trabalho e de vida as deixam com a saúde mais frágil”, afirmaram.