Territórios quilombolas lutam por uma existência solidária e comunitária na cidade

Modos de vida | Apesar de enfrentarem desafios, especialmente no contexto de pandemia, comunidades constroem novas possibilidades de educação e lógicas de estar no mundo

*Foto de capa: Flávio Dutra/JU

“A nossa cultura, a nossa religiosidade, o nosso modo de lutar, as nossas comidas típicas, a nossa capoeira, o nosso batuque aqui do Sul, as nossas crianças, o amor que a gente tem pela nossa vida, pela nossa mãe África, pelo Brasil afroindígena, o nosso jeito de enfrentar a vida, dançando, sambando, cantando, saudando os Orixás, jogando uma capoeira, tudo isso é muito valioso, e isso é o Quilombo, é a família, é o tudo.” É com essas palavras que o educador social, capoeirista e liderança quilombola Luis Rogério Machado, o Jamaica, define a vivência no Quilombo dos Machado, localizado no bairro Sarandi, em Porto Alegre, onde vivem, atualmente, 270 famílias. 

Os quilombos foram, historicamente, espaços de refúgio para pessoas africanas e seus descendentes escravizados pelos europeus no Brasil e na América. De acordo com a Constituição de 1988, são territórios garantidos por lei como reparação histórica. Na capital gaúcha existem, atualmente, pelo menos oito quilombos: Machado, Família Lemos, Família Flores, Alpes, Família Ouro, Fidelix, Família Silva e Areal. Além de resgatarem a memória dos ancestrais e de serem espaços importantes de preservação, inclusive, ambiental, os territórios quilombolas são lugares de potência humana, em que outras formas de experienciar a realidade são possíveis, apesar dos desafios e da negligência do poder público. “Temos de combater a miséria para que não seja realidade nesses lugares, em função das políticas adotadas pelas gestões públicas, mas esses espaços não são lugares de falta. Quando a gente entra em contato com eles, vemos que ali é um lugar de construção e de vida”, reflete a educadora, integrante da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul e doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural da UFRGS, Patrícia Gonçalves.

Há uma relação de tecido comunitário e possibilidade de conviver com o outro que, às vezes, é muito diferente das formas com as quais estamos acostumados; percebemos que há uma solidariedade, acentuada neste contexto de pandemia, que não nasceu agora.

Patricia Gonçalves

Exemplos desse modelo de vida solidário acontecem distintamente em cada comunidade. No caso do Quilombo da Família Flores, localizado no bairro Glória e composto por 43 famílias, no geral, a diarista e liderança Geneci Flores relata que, no ano passado, foram realizadas atividades que atendiam aos interesses da comunidade. “Articulei para trazer aqui uma pessoa que explicasse as novas regras de aposentadoria, uma nutricionista que apresentasse uma dieta específica, porque temos na população elevados índices de pressão alta e diabetes, e alguém para falar sobre as funções de um assistente social, porque, às vezes, a gente sabe que existe, mas não sabe para que serve e como pode nos ajudar. No final do encontro, realizamos uma oficina de turbante para a mulherada!”, conta. No Quilombo dos Machado, essa pulsão de vida se manifesta, hoje, na construção de duas praças – projeto que está aceitando doações –, nas aulas de capoeira e na cozinha compartilhada. “Tudo isso é para fortalecer o espaço comunitário”, enfatiza Jamaica. 

A atuação em rede é o que permite a resistência dos territórios, além de revigorar os quilombolas que continuam buscando seus direitos. “É muito bom porque sabemos que não estamos sós, com eles [os quilombolas] eu posso desabafar; o que eu passo, eles passam também, não sou repreendida”, relata Geneci. É através desses grupos de apoio que ela mobiliza outras pessoas para ajudar quem precisa. “Às vezes passo o dia todo atrás de uma cesta básica, e não é para mim. Quando sobra num quilombo e falta em outro, a gente troca e se ajuda; essa é a nossa política, a da ação.” Para Jamaica, todo dia é preciso agir e lutar.

Desafios a gente tem há 520 anos. Todo dia a gente tem que estar gingando, é a caminhada do dia a dia. Tenho que saber como atacar e como defender, porque nada é fácil para a gente; todos os dias estamos em risco, porque o sistema quer nos esmagar. 

Jamaica
Na Comunidade Sete de Setembro – Quilombo dos Machado, Jamaica e Tamires (na foto acima), defendem a importância e o espaço para suas tradições. Lutando pela regulamentação da área, mantêm a vontade de levar adiante projetos como o de uma biblioteca e de uma cozinha comunitária (Fotos: Flávio Dutra/JU)

Quilombo Lemos em risco

Nos intervalos do expediente de trabalho, Sandro Gonçalves de Lemos, liderança do Quilombo Lemos, reflete sobre os tempos difíceis que a comunidade está vivendo. Com uma ordem de despejo expedida em 22 de novembro deste ano, em plena pandemia, as crianças e os adultos da comunidade estão sob constante estresse. Depois da visita dos oficiais no início de dezembro, um surto de coronavírus atingiu pelo menos sete pessoas, entre elas o próprio Sandro.

Qualquer barulho que a gente ouve, saímos pra rua; a gente não dorme direito… Quando isso começou em 2018 tinha gente infiltrada, andando pela madrugada armada, e as crianças até hoje têm lembranças.

Sandro Lemos

A história do Quilombo Lemos remete à metade do século passado. A mãe de Sandro nasceu no Quilombo Maçambique, em Canguçu, e veio morar em Porto Alegre quando pequena, na Lomba do Pinheiro, onde conheceu o pai de Sandro, que trabalhava no asilo Padre Cacique. Por conta da precariedade do transporte público, especialmente para as zonas periféricas da cidade, a família se mudou para uma área próxima ao asilo, onde hoje fica o território quilombola. “Como a gente é descendente de quilombo, automaticamente éramos, ou, na verdade, somos quilombolas que saímos do nosso lugar original. A gente retomou o nosso modo de vida dentro do quilombo. Meu pai plantava todo tipo de hortaliça e criava porco, galinha. Tudo isso foi impedido a partir de 2008, depois que entraram com a reintegração de posse. A justiça nos proibiu de usar a terra, de fazer qualquer tipo de melhorias na casa, e por isso algumas das minhas irmãs tiveram que sair, porque a família foi crescendo”, explica. 

Além da pandemia e do processo de reintegração de posse, os integrantes do território estão com dificuldades em relação à educação, o que se repete em outros quilombos também. “As crianças estudavam e não voltaram às aulas, como nos outros colégios. A gente tem problemas com a internet, pois, como é longe, não pega fibra óptica e o cabo perde muito a qualidade, fazendo com que fique difícil para as crianças, que mesmo assim estão tentando fazer os deveres escolares.” Apesar disso, atividades estão sendo desenvolvidas para que elas tenham outros aprendizados e não fiquem dependentes de um ensino convencional. “Estamos fazendo leituras para eles não ficarem com muito tempo ocioso. Nós temos a quilomboteca, que parou as construções por causa da pandemia, mas que vai voltar. Eu quero fazer aulas no contraturno. A gente quer trazer crianças de outros quilombos e da comunidade também para que não fiquem ociosas”, pondera.

O Quilombo Lemos enfrenta um processo de remoção por decisão judicial. O reconhecimento de pertencimento e da legitimidade de sua tradição é um dos mais graves problemas enfrentados pelas comunidades quilombolas (Fotos: Flávio Dutra/JU)

Visões quilombolas para saúde e educação 

Os territórios quilombolas têm uma visão integrada sobre saúde, educação e existência. Isso significa que não é possível dissociar essas áreas de outras essenciais para uma vida digna, como segurança alimentar e acesso à água e a um bom transporte público. Em 2019, surgiram os coletivos de saúde e educação da Frente Quilombola. Conforme a doutoranda Patrícia, a ideia inicial, e que foi atravessada pela pandemia de coronavírus, era se articular para que os serviços de saúde abrangessem os modos de vida singulares desses grupos. “Queríamos que outras formas de promover saúde fossem consideradas, como a nossa espiritualidade, os nossos ritos, nosso aprendizados dos terreiros, que também nutrem esses corpos que buscam tratamento e que são, muitas vezes, descartados pela lógica ocidental de saúde”, afirma. Nessa perspectiva, de ampliar o olhar, Geneci passou para toda a família Flores a informação de que podem se declarar quilombolas na hora de fazer consultas nos postos de saúde. “Os médicos precisam ter esse cuidado, precisam conhecer, até para pensarem nas políticas certas”.

Com a necessidade de isolamento para conter o avanço do coronavírus, as desigualdades ficaram ainda mais evidentes na sociedade, e a solidariedade, a arrecadação de cestas básicas e de itens de higiene, por exemplo, foi primordial para conter os danos imediatos que colocavam a vida das pessoas em risco. Como reforça Geneci, se não fosse essa corrente, a situação seria ainda mais difícil.

A gente tá sobrevivendo nesses meses de pandemia não é por causa do governo, mas por causa dos apoios que tivemos. Se dependesse do poder público, muitas famílias iam estar desesperadas. É triste tu ver um filho querer um leite, um açúcar para adoçar o café, e não ter.

Geneci Flores

Para Patrícia, essa assistência deveria ser papel do Estado. A educadora explica que a realidade imposta, no entanto, apontou para a necessidade de o movimento social se organizar para fazer arrecadações. Além disso, saltou ainda mais aos olhos que as instituições e gestões governamentais precisam ver a saúde e a educação de maneira integrada e pela perspectiva quilombola nesses territórios. No âmbito da saúde, mas que também é da educação, uma estratégia para complementar a dieta das famílias foi a construção de hortas. “Enquanto educadora, eu vejo que o ensino é arcaico, porque não considera esse contexto e poderia contemplar o entorno da escola. É preciso dialogar com esses territórios e enxergar ali as potências. Não dá para continuar achando que apenas a escola detém o conhecimento. Os saberes não estão só dentro de uma sala de aula. Quando as crianças aprendem a cozinhar, cuidar da horta, confeccionar máscara, elas também estão adquirindo conhecimento.” 

Esse entendimento passa por considerar os problemas de conexão das comunidades, como ressalta a liderança Daiane da Silva Muniz, do Quilombo da Família Silva, onde vivem 23 famílias. “As crianças aqui não estão com aulas porque não temos cobertura para aulas online. Fica difícil para nós, pais, termos de ajudar eles nas tarefas, pois, se muitos não têm estudo, então, como irão ajudar os filhos?”, questiona. Para manter algum vínculo com a escola, Daiane vai à instituição buscar as atividades e falar com as professoras.

Já os filhos da Geneci enfrentam a inconstância da rotina escolar. “Coloquei meu filho mais velho para ajudar o mais novo, mas o mais velho desistiu este ano, porque ele estava estudando com apenas quatro alunos pelo formato online”, conta. Conforme Jamaica, outra urgência é garantir uma boa alimentação para que as crianças possam aprender. “Sem isso, é difícil uma boa educação e futuro. E a gente precisa dos nossos nas faculdades e em outros espaços; temos de fortalecer o nosso jeito quilombola de ser.” Esse é um desafio que o Quilombo da Família Silva também enfrenta. “Com mais crianças em casa, as famílias estão tendo mais gastos com alimentos”, relata Daiane. 

Mas, além de superar esses problemas, os quilombolas querem, sobretudo, outro tipo de educação, que seja mais consciente, atrativa e antirracista. Para Sandro, é essencial valorizar a história negra dentro das escolas.

A nossa história não é contada nas escolas nem nas faculdades, porque não é interessante. É sempre a visão eurocêntrica. Então só mudando isso a gente vai conseguir melhorar. A gente só é lembrado no dia 20 de novembro… Será que foi só isso? A faculdade mais antiga do mundo fica na África. Quantos inventores negros nós temos? Todo mundo sabe quem inventou o avião, o telefone, mas para o que um negro criou não é interessante dar notoriedade.

Sandro Lemos

Geneci considera importante que a sociedade brasileira conheça melhor, pela educação, a história dos quilombolas. “A gente nasceu livre, nos escravizaram. A população precisa conhecer para ver que aqui não tem negrinhos. Tem negrões, gente forte!”, conclui.