Um ensaio sobre a presença de negros na academia, na ciência e nas artes

*Foto de capa: Arquivo pessoal

Em 2002, eu fiz o concurso para professor adjunto no Instituto de Geociências da UFRGS. Comigo concorreram mais 10 pessoas, a maioria egressa da Universidade. Quatro delas tinham seus currículos e suas trajetórias acadêmicas e científicas muito similares às minhas. Foi um concurso competitivo e cansativo. Ao final, eu havia passado em primeiro lugar, estava contente com o resultado e muito emocionado. Fui, então, agradecer à banca examinadora. 

Após todas as tratativas formais, a secretária que acompanhou o concurso e com quem hoje trabalho na coordenação do Programa de Pós-graduação em Geociências, Letícia Barbosa, dirigiu-se até mim e disse algo parecido com “Parabéns, você é o quarto professor negro em toda a Universidade Federal do Rio Grande do Sul”. A minha surpresa ocorreu em duas direções: a primeira, em receber os parabéns “com um adjetivo” que tornava a minha responsabilidade naquela posição muito maior do que apenas aquela de ter passado naquele concurso nesta instituição. A segunda, a mais óbvia: a natureza da informação de que em pleno século XXI havia apenas quatro professores negros em uma universidade federal que hoje carrega a responsabilidade de ser a melhor universidade pública federal do país.

Nunca chequei esse dado, mas aquela frase me fez recordar toda a minha trajetória na graduação em Salvador, na qual eu e mais dois outros alunos veteranos éramos os únicos estudantes negros do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia (UFBa). Juntamente conosco, três outros professores compunham a população discente e docente de 6 negros em todo o Instituto entre os anos 1987 e 1992. O pequeno detalhe é que a Bahia é o estado que possui a maior população negra do país. E Salvador é a cidade que, em 2011, representantes da América Latina, da África e do Caribe declararam como a Capital Negra de toda a América Latina durante o 21.º Encontro Ibero-americano de Afrodescendentes.

Hoje, há apenas dois professores negros no Instituto de Geociências da UFRGS, que possui cerca de 90 docentes (informação extraída do site do IGEO/UFRGS), correspondendo então a pouco mais de 2% do quadro total. Esses 2% da população docente negra no Instituto de Geociências parece refletir as proporções de toda a UFRGS: no ano passado, consultei a PROGESP da UFRGS para saber a quantidade de professores negros na instituição. Os Recursos Humanos (SRH) têm um sistema ainda falho para essa análise. Nos dados que eu consegui levantar, com o auxílio da mesma secretária que havia me dado os “parabéns adjetivados” quando passei no concurso, de um total de mais de 2.700 professores que a UFRGS tem atualmente, só 923 têm os dados sobre a sua cor preenchidos nos formulários. 1.851 docentes não preencheram esse campo. Dos 923 que o preencheram, 10 (um pouco mais de 1%) se disseram negros e 18 (quase 2%) se disseram pardos. Levando-se em conta esses 28 docentes (3% dos respondentes), 3 são docentes titulares. Esses números me fazem acreditar naquele de 2002.

Embora, ao longo desses 18 anos de ensino público, eu tenha visto a cor dos meus alunos mudar, minimamente turbinada nos últimos anos pelas cotas raciais, ainda assim a presença negra é muito desbotada. Quando eu penso no meu entorno, com os Institutos de Matemática, Física e Química, pontualmente percebo um número também inexpressivo de docentes negros. Talvez para alguém que apenas considere o fato de o Rio Grande do Sul ter uma grande parcela da população branca devido à forte colonização alemã e italiana e de outros países europeus, esses números apresentados possam ser justificados.  

Dados do IBGE de 2018 demonstram que o Rio Grande do Sul é o segundo estado do Brasil com a maior população branca, a qual corresponde a 78,6% da população. A percentagem de negros e pardos autodeclarados no Estado corresponde a 6,5% e 14,5%, respectivamente. Somados, então, chegam a 21%. No Brasil como um todo, para o mesmo ano, a proporção entre brancos, negros e pardos é de 43,1%, 9,3% e 46,5%, respectivamente, e na Bahia essa proporção é de 18,1%, 22,9% e 58,2%, respectivamente. Se pensarmos que apenas 30% da população brasileira atinge o ensino superior, ao menos 6% da população negra e parda do Rio Grande do Sul deveria ter atingido esse patamar. Se pensarmos que, dentre os que atingiram esse nível de instrução, poucos são professores e pesquisadores nas universidades públicas, talvez a cifra de 2% de negros do Instituto de Geociências tenha algum fundamento. 

Não sou estatístico nem geógrafo, e a análise desses números precisaria de maior cuidado para se entender inclusive a sua evolução histórica no contexto brasileiro e onde essas parcelas da população estão situadas na sociedade. Ainda assim, neste momento em que estamos revivendo as questões raciais acirradas recentemente por um fato totalmente recorrente nos Estados Unidos (a morte violenta de George Floyd), vale-nos perguntar: 

Onde estão os negros em toda a sociedade brasileira? Que espaços nós ocupamos nesta sociedade? Em que(m) nós nos espelhamos ou com quem nos identificamos?

Se, no mundo acadêmico ao qual pertenço, a presença do negro brasileiro é quase pálida, no mundo das artes visuais, no qual eu tenho uma atividade de igual intensidade, o cenário não parece tão diferente. Embora haja uma produção artística visual vibrante de afrodescendentes no cenário cultural ao longo de toda a história brasileira, essa produção parece não deixar rastros, por não estar representada em igual proporção nos grandes acervos museais. 

As coleções de grandes instituições são responsáveis por registrar a produção contemporânea à sua época. São esses conjuntos que contarão não apenas os interesses dos artistas em cada momento histórico, mas também darão as características dos sujeitos proponentes dessas criações e os pensamentos que determinada sociedade praticava em determinados momentos. São esses acervos que contarão a história social de uma cidade, de um estado, de um país. 

Embora nos primeiros 15 anos do século XXI tenha havido várias ações institucionais para incentivar a produção afrodescendente brasileira, não houve o investimento de igual intensidade na aquisição de obras produzidas por afrodescendentes por grandes instituições brasileiras. A exposição “Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca (do Estado de São Paulo)”, promovida pelo Tadeu Chiarelli, diretor da instituição e principal curador dessa exposição em 2016, pretendia não só verificar essa produção, mas também pensar a sua presença nas principais coleções institucionais no Brasil. 

A Pinacoteca do Estado de São Paulo é, depois do Museu Afro Brasil, criado pelo artista Emanoel Araújo em 2004, o museu Paulista com a maior presença de artistas afrodescendentes em seu acervo. E sendo São Paulo o grande centro cultural do Brasil, pode-se pensar nesse museu como uma das grandes instituições brasileiras representativas da arte. Uma análise elaborada por Fabiana Lopes, uma das curadoras da exposição, para o catálogo, trata da disparidade entre a vibrante produção afrodescendente e sua pequena representação em acervos institucionais e lança ideias sobre essas causas em três pontos principais. 

O primeiro deles é o entendimento da história da civilização ocidental como uma narrativa da história universal. Há uma capacidade incrível da civilização ocidental de construir uma narrativa sobre a sua própria história e tomar posse da história do planeta numa estrutura ascendente, colocando a civilização ocidental como um ponto de chegada da história humana. Dessa forma, essa cultura ocidental restringe às narrativas das histórias das demais civilizações a seu próprio tempo e espaço. Um exemplo claro é a ideia de uma evolução simplista da arte e da própria civilização que parte do Egito – o mais norte da África possível – para a Grécia e Roma. Em algumas vezes, nas leituras sobre esse tema, esquece-se que o próprio Egito faz parte do continente africano. 

O segundo ponto baseia-se no fato de que, como a cultura ocidental é a referência incontestável, ela precisa tornar marginal todas as outras culturas, silenciá-las. E o terceiro ponto é como a história da arte reflete a narrativa histórica hegemônica de forma a diminuir a possibilidade de engajar a produção visual dessas outras narrativas de maneira não reducionista. Todos esses aspectos deixam a produção vibrante afrodescendente como uma produção regional, secundária ou local, periférica a uma construção da narrativa ocidental, no caso do Brasil, eminentemente branca.

Como artista, sempre me interessou a percepção do espaço físico como um espaço no qual nos organizamos de acordo com as nossas características individuais, pessoais, culturais, sociais e psicológicas. Ao trabalhar com o espaço físico, espero estar ativando as questões internas inerentes ao ser humano que refletem na forma como organizamos esses espaços e demonstramos nossos aspectos culturais e sociais. Para a exposição “Territórios…”, citada acima, propus um dos trabalhos da série “Estruturas Dissipativas” (2013-2020), que remetem a uma sobreposição de espaços internos e externos e ainda a algum representante lúdico de playground ou parques públicos, como gangorras, balanço, trepa-trepa e carrossel. Embora haja a presença e a distribuição desses elementos sobrepostos um ao outro, sugerindo uma convivência convidativa entre eles pelas cores e os seus reconhecimentos pelas suas formas, a organização e a utilização parecem impossível. 

Obras da série “Estruturas Dissipativas”, produzida desde 2013 (Fotos: Rommulo Vieira Conceição/Edouard Fraipont)

Na exposição, foi mostrado o trabalho “Estruturas dissipativas: gangorras (2013)”. Acentuando a impossibilidade, grades, paredes e lâminas de vidro cortando o trabalho parecem apresentar uma impossibilidade de atravessá-los ou penetrá-los. Contrastado ao convite dado pela cor e a forma, está o impedimento e a divisão dadas pelas grades e paredes. Talvez remetam a quem possa usar esses espaços físicos, talvez à impossibilidade de passagem de um lugar para o outro, de um estrato social para outro ou de um grupo social para outro. 

Em 2016 comecei uma nova série de trabalho na qual esses impedimentos são potencializados: o título da série é “A fragilidade dos negócios humanos pode ser um limite espacial incontestável”. Os trabalhos apresentam paredes e grades sobrepostas umas às outras com janelas e portas vedadas por tijolos. Hanna Arendt, em seu livro “A Condição Humana”, diz que os critérios que permitem aos homens distinguirem o bem e o mal, a verdade e a mentira foram subvertidos ou até mesmo aniquilados com a entrada da sociedade na modernidade. 

Nessa situação, essa sociedade enfrenta os desafios e os problemas da convivência humana sem as garantias que a religião ou a tradição, por exemplo, poderiam oferecer. Se ambas perderam a sua credibilidade, o passado também perde a sua autoridade ou referência para que os homens possam usá-lo para se guiarem e se comportarem num futuro. Essas questões Hanna Arendt descreve como “a fragilidade dos negócios humanos”. Essa falta de valores produz uma sociedade que volta a usar critérios muito rígidos, preestabelecidos para se guiarem. A sensação irreal da ameaça do outro se torna mais evidente. A própria liberdade de convivência se torna uma ameaça.

Floyd, um negro americano de 46 anos, morreu em 25 de maio, em Minneapolis, após um policial branco pressionar seu joelho sobre o seu pescoço por mais de 8 minutos. Segundo informações tiradas do G1, a polícia atendia à chamada de alguém dizendo que um homem tentava usar cartões falsos em uma loja de conveniência. Dois policiais localizaram o suspeito em um veículo e afirmavam que ele “parecia estar intoxicado” e a abordagem truculenta resultou em morte. Alguém denunciou Floyd à polícia com base numa prerrogativa de que ele usava cartões (ou passava dinheiro) falsos. Precisamos lembrar que a imagem do negro na sociedade americana é pior do que aquela no Brasil. 

A polícia atendeu ao chamado de alguém e foi procurá-lo. Não foi apenas a polícia a culpada por esse crime, mas toda a sociedade, ao associar a imagem de um negro à ameaça, violência e insegurança. Dentre as frases que Jacob Frey, prefeito de Minneapolis, disse sobre esse assunto, uma me chama atenção: “Ser negro nos EUA não deveria ser uma sentença de morte”. Embora essa seja uma frase proferida nos meados de 2020, Bob Dylan, em 1976, desenvolvia uma estrofe na sua música Hurricane que em tradução livre segue como: “Quando um tira o fez parar no acostamento/ Igualzinho à vez anterior e à outra vez antes dessa/ Em Paterson é assim mesmo que as coisas acontecem/ Se você é negro, melhor nem aparecer na rua/ A não ser que queira atrair uma batida policial”.

Esse crime, que chamou atenção de um público internacional, acontece dia após dia em várias cidades brasileiras de forma silenciosa. Nos acostumamos com ele. Nos acostumamos à visão da figura do negro como ameaça, crime e marginalização. Quando deslocaremos o olhar ao negro, sempre associado a um problema social, para outra direção que seja de um líder de grupos de pesquisas científicas, de um acadêmico ou de um produtor de conteúdo artístico sem as conotações regionais que a cultura ocidental lhe impôs? 

Para que essa transição seja feita, precisamos identificá-los nesses outros grupos. Precisamos divulgar os negros que ocupam esses lugares para que possam ser referências a outros negros e que possam ser inclusive novas referências imagéticas aos brancos, a toda a sociedade. Enquanto isso não ocorrer, qualquer evolução capitalista que tente suceder não obterá sucesso se não abordar toda a sociedade.


Rommulo Vieira Conceição é professor do Instituto de Geociências e artista visual.