UFRGS e a Covid-19

1º de Maio: pesquisadores da UFRGS refletem sobre o Dia do Trabalhador em meio à pandemia

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A UFRGS entrevistou seis professores para compreender a nossa relação histórica, social, econômica e comportamental com o trabalho. Que esse 1º de Maio seja pensado a partir dos trabalhadores como forma de garantir o respeito àqueles que são vitais para a nossa sociedade

Imagem: Operários – Tarsila do Amaral.

A nossa relação com o trabalho começa desde cedo. Uma das primeiras perguntas que nos fazem quando somos crianças é “o que você quer ser quando crescer?”. A visão romantizada do que é o trabalho nos leva a responder aquilo que se sonha: astronauta, bailarina, bombeiro, médico. Na vida adulta, os caminhos que tomamos nem sempre são os que respondemos na nossa infância.

Para compreender a nossa relação histórica, social, econômica e comportamental com o trabalho, a Assessoria de Imprensa da UFRGS conversou com seis professores que atuam na Universidade e desenvolvem pesquisas sobre essas questões. Os caminhos nos levam na mesma direção: esse 1º de Maio será diferente de todos os outros, mas tão semelhante a tantos outros que já vivemos: de reflexão, de lutas, mas, acima de tudo, de resgate da coletividade.

Fernando Coutinho Cotanda, doutor em Sociologia e coordenador do Grupo de Pesquisa Processos de Socialização, Trabalho e Crítica Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UFRGS, coloca que o primeiro de maio é uma data escolhida como homenagem às lutas sindicais realizadas em 1886, em Chicago (EUA). Um dos principais objetivos daquelas manifestações foi a redução da jornada de trabalho para 8 horas, questão tratada pelas empresas e pelo governo, na época, como assunto de polícia. “No curso das mobilizações ocorreram muitos conflitos, mortes e prisões de trabalhadores”.

No Brasil, o 1º de Maio foi declarado feriado em 1925, considerado um dia de luta, protestos e crítica social. Entretanto, o governo Vargas transformou o “dia do trabalhador” em “dia do trabalho”, “esvaziando o seu conteúdo contestatório e o transformando em uma data de desfiles, celebrações e enaltecimento das políticas governamentais”, relata o professor Cotanda.

Mas afinal, o que é o trabalho e como ele se desenhou e continua se desenhando no Brasil? Visto como atividade degradante, desenvolvida por escravos, a origem da palavra trabalho remete a tripalium, que está associado à tortura. Hoje, em meio à pandemia do novo coronavírus, é possível perceber uma mudança mais profunda em relação aos modos de trabalho, “em especial diante das transformações do mundo por meio da Era Digital, da automação dos processos produtivos e da Inteligência Artificial”, como coloca o doutor em Ciências Econômicas, professor da Faculdade de Ciências Econômicas (FCE) e integrante do Núcleo de Estudos em Economia Criativa e da Cultura (Neccult), André Moreira Cunha.

Entretanto, mesmo que aquilo que era uma tendência agora tenha se potencializado, vivemos no Brasil resquícios de um passado tão presente. A história do trabalho no Brasil é marcada, sobretudo, pela escravidão e pela permanente desigualdade de gênero e raça. A escravidão deixou marcas profundas, forjando uma ética do trabalho degradado e uma indiferença moral das elites em relação às necessidades da população. “Nós temos mais tempo de trabalho escravo do que de trabalho livre e, mesmo com o fim da escravidão, os negros continuaram em uma posição social subalterna”, frisa Cotanda.

Ou seja, as definições de trabalho ao longo da história carregam, sempre, certa ambiguidade. Clarice Gontarski Speranza, doutora em História, professora do IFCH e pesquisadora da História Social do Trabalho, contextualiza como surge a relação brasileira com o trabalho e como isso de mantém até os tempos atuais. “A nossa relação com o trabalho, e todo o resto, está sempre mudando, porém, ao mesmo tempo, algumas coisas permanecem. Há aspectos do século XVIII que identificamos e conseguimos ver a sua relação com o presente”, diz ela.

No Brasil, o 1º de Maio é um momento de celebração de trabalhadores organizados, durante a Primeira República, que lutavam pelas “três oito horas”: (a divisão do dia em oito horas de trabalho, oito horas de descanso e oito horas de lazer). “Estamos falando aqui da grande luta dos trabalhadores na Primeira República (1889-1930) que é marcada pelo início da industrialização e de uma mão de obra formada por trabalhadores livres”, explica Speranza. Lembre-se que a Lei Áurea, que “abole a escravatura no Brasil”, é de maio de 1888. No entanto, é somente a partir de 1906 que o movimento operário brasileiro passa a ter maior organização.

A forma como hoje compreendemos a experiência de trabalho no Brasil tem relação com a preponderância na escravidão no país. O Brasil foi o principal destino de escravos, principalmente no século XIX, quando cerca de 5 milhões de pessoas escravas são trazidas para cá. “Durante a abolição da escravatura, temos o contraste entre uma Corte que quer ser civilizada e uma sociedade brasileira baseada na escravidão e, portanto, na exclusão dessas pessoas de qualquer tipo de cidadania”, explica Clarice.

Essas nuances reforçam a condição de que o trabalho, e consequentemente aquele que o exerce, está ligado a uma ideia de desvalorização. “Quem trabalha é visto como uma pessoa sem valor (alguma semelhança com os tempos atuais?). Não estamos no século XIX, mas a forma com que as situações se parecem representa o aspecto cultural de, ainda, relacionar o trabalho com algo sem valor”, complementa Clarice.

Essa dicotomia do trabalho, segundo o pesquisador Cotanda, vem desde a instituição da modernidade capitalista. “Assistimos a um embate permanente entre a tentativa de mercantilizar o trabalho e a tentativa de, pela via da proteção social, transformá-lo em fonte de dignidade e justiça social”.

É a partir da criação da Organização Internacional do Trabalho em 1919 que, de certa maneira, se cria um regramento normativo que possibilite proteger o trabalho. “Como foi feito no Brasil com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a Constituinte de 1988”, diz Fernando.

A mudança do modo de trabalho no Brasil, com o fim da escravidão e constituição de direitos básicos, tira o trabalhador da esfera de objeto (escravo) para se tornar pessoa (cidadão). Em 1918 é aprovada a primeira lei que garante algum direito aos trabalhadores, que é a legislação que rege os acidentes do trabalho; na Primeira República, temos o movimento operário organizado, além dos primeiros sindicatos e associações. “Neste momento, uma das principais lutas é a valorização do trabalhador, ou seja, dizer que ele é importante para sociedade, é digno e se trata de um sujeito instruído. Nesse discurso temos o trabalhador considerado pessoa e, portanto, digno de ter direitos”, salienta Clarice.

É nessa construção conflituosa que o trabalho no século XX no Brasil vai se construindo: se, por um lado, temos a exclusão social, de outro surge a ressignificação da figura do trabalhador e do 1º de Maio durante o primeiro governo de Getúlio Vargas: criação do Ministério do Trabalho (1930), Lei de Sindicalização, legislação social que regula as relações de trabalho (CLT), limitação da jornada de trabalho e instituição do salário mínimo. “São fatores que deram alguns direitos específicos, mas que provocaram mudanças na vida dos trabalhadores”, explica Speranza.

O trabalho, o trabalhador e a pandemia

Imagem: Café – Candido Portinari.

O salário em troca da jornada de trabalho é um mecanismo que dá segurança ao trabalhador, se trata de um direito que está relacionada à valorização da pessoa enquanto cidadã.Lorena Holzmann, doutora em Sociologia, professora do IFCH e pesquisadora sobre Sociologia do Trabalho, diz que não há sociedade que sobreviva sem o trabalho. “O trabalho ou quem produz tem, em cada contexto, uma consideração histórica específica. Na sociedade capitalista, as pessoas só conseguem obter os bens de sobrevivência e garantir a sua subsistência e da sua família se vendem a sua força de trabalho em troca de um salário”.

Entretanto, a perda do vínculo empregatício, a informalidade, a precarização e a uberização do trabalho têm ganhado cada vez mais espaço e agravando as relações de trabalho. De acordo com o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre), a taxa de desemprego do Brasil pode saltar de 11,6% para 16,1% neste trimestre. Isso significa que 5 milhões de pessoas podem entrar na fila do desemprego em apenas três meses, elevando de 12,3 milhões para 17 milhões o número de pessoas sem trabalho no país.

“O IBGE coloca que 23% da população brasileira ocupada é trabalhador por conta própria, o que significa: VIRE-SE. Desses, quase 80% não tem nenhuma formalização. É a categoria de ocupados que tem o rendimento médio mais baixo de toda a escala, é a condição precária de ganho de regularidade do trabalho, de incerteza em relação ao presente e ao futuro. Esse trabalhador que não tem CNPJ, não contribui para a previdência e não tem nenhuma possibilidade de pensar no futuro. Hoje, com as reformas Trabalhista e Previdenciária, a situação se torna ainda mais precária. A incerteza é a única certeza da vida da grande massa dos trabalhadores no Brasil”, alerta Lorena.

Para o economista André Cunha, é preciso rediscutir a jornada de trabalho e a criação de renda universal, algo que está na agenda dos pesquisadores e do Banco Mundial. “Os empresários ‘ligados’ no futuro precisam pensar para além da produção, porque é preciso ter consumidores. A questão agora é como garantir uma renda mínima para a população e como financiar isso: redesenhar os sistemas tributários, rediscutir a distribuição de renda, tributar os super-ricos para evitar maiores tensões na sociedade e redesenhar as redes de proteção social e das formas de financiamento são tendências para o futuro pós Covid-19”, enumera ele.

Com a situação de mercado comprometida devido à pandemia, em especial em países como o Brasil, o aumento da desigualdade e da pobreza são inevitáveis. Por outro lado, a pandemia pode servir como um grande laboratório para se testar novas relações de trabalho, novas tecnologias, sistemas mais eficientes e uma nova organização dos negócios. “O mercado de trabalho refletirá sobre as mudanças socioculturais que momentos como esse podem provocar. Há várias questões que vinham sendo discutidas antes e que agora precisam ter o debate reorganizado. As relações de trabalho serão repensadas, mas ainda não sabemos o resultado disso” diz Cunha.

Em meio a tudo isso, ainda temos questões de gênero e raça a serem discutidas no Brasil, como bem lembra o professor Fernando. “A renda média mensal do brasileiro branco, seja ele trabalhador formal ou informal, é muito superior à do trabalhador negro. As mulheres negras, por sua vez, como resultado de uma dupla discriminação (de gênero e raça), apresentam uma situação de sistemática desvantagem em todos os principais indicadores sociais e de mercado de trabalho. A taxa de desemprego de mulheres e negros é sistematicamente superior à de homens e brancos e a taxa de desemprego das mulheres negras é quase o dobro da dos homens brancos”.

O medo de perder o emprego é algo que assombra quase todos os trabalhadores neste momento. Para o professor da Escola de Administração (EA) Cláudio Pinho Mazzilli, doutor em Science de Gestion e pesquisador sobre a qualidade de vida e sofrimento e prazer no trabalho, é necessário se manter animado, ter fé, coragem, força e ir à luta. “Neste momento todos estamos na mesma situação e o vírus nos coloca numa situação de luta pela vida. Reflita sobre as suas escolhas, não importa se é pobre ou rico, se está em um país desenvolvido ou não, reflita”.

O cenário de incerteza, medo e insegurança devido aos problemas de saúde pública e à falta de política social no Brasil fazem com que esse 1º de Maio seja de reflexão. Tudo isso nos afeta enquanto trabalhadores, mas acima de tudo enquanto seres humanos. Mazzilli coloca que é preciso ter consciência sobre o valor do trabalho, que precisa ser reinventado constantemente. “Busque a criatividade, encontre força emocional no convívio com a família, veja como o outro também está sofrendo e trace estratégias todos os dias para sua sobrevivência. Aos poucos, compartilhando com os outros, estabeleceremos relações de confiança para lutar e superar esse momento”.

Ao mesmo tempo, percebemos que a nossa relação com o trabalho é mais importante e necessária que nunca. Faz-se necessário perceber o trabalho como algo vital para compreendermos esse momento. “É preciso olhar para os trabalhadores, suas experiências enquanto sujeitos permeados por questões pessoais, de tempo e de construções históricas. Esse 1º de Maio deve ser pensado a partir das pessoas que estão trabalhando, é preciso ter respeito aos trabalhadores porque eles são vitais para a nossa sociedade”, reforça Clarice.

Esse dia representa uma comemoração das lutas e das conquistas dos trabalhadores ao longo do tempo. “São eventos importantes e que devem ser sempre rememorados. Em geral, se fala do trabalho como algo difícil, árduo e penoso, mas não é só isso. O trabalho é uma forma de mobilizar capacidades e forças físicas e intelectuais para produção de algo previamente pensado e isso não é necessariamente, sempre, algo ruim. É pelo trabalho, também, que se manifesta a substância de toda a criatividade possível do ser humano”, diz a pesquisadora Lorena.

Educação financeira para a vida

Além do medo de perder o emprego, temos um quadro de endividamento do povo brasileiro. Por que não sabemos poupar, nos planejar para momentos de crise? Wendy Haddad Carraro, doutora em Economia do Desenvolvimento, professora da Faculdade de Ciências Econômicas e coordenadora do Projeto de Pesquisa e de Extensão “Educação Financeira para todos e para toda vida”, coloca que a Educação Financeira ainda é pouco explorada em toda estrutura educacional do Brasil. “Embora grande parte da população lide com dinheiro, o brasileiro não tem o costume de debater e elaborar o orçamento doméstico em conjunto com seus familiares. Até mesmo conversar com os amigos sobre suas finanças, muitas vezes, é visto como invasão de privacidade”, diz ela.

Uma pesquisa do Banco Central do Brasil revelou que, de cada quatro famílias, três sentem dificuldade para chegar ao fim do mês com seus rendimentos em dia e controlados. Segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), em julho de 2019, 64,1% das famílias brasileiras estavam endividadas, sendo que 9,6% afirmaram não ter condições de quitar seus débitos. Este dado é muito relevante. Se em tempos “normais” a situação tem este cenário, o que esperar após um período de pandemia, que tem se caracterizado pela redução de renda e aumento de gastos em muitas famílias?

“A pandemia ainda não passou, então para quem não tem o costume de acompanhar e controlar os seus gastos e estabelecer um planejamento, essa é uma oportunidade para ser organizar e ter um foco neste sentido. Para que o planejamento seja uma prática comum, é necessário fomentar a consciência financeira na população em geral. É um desafio, porque o indivíduo precisa querer, mas também precisa ser cativado. Precisa aprender que o controle financeiro é um aliado para sua segurança financeira”, explica a professora.

Para que as pessoas se preparem para o futuro, o projeto “Educação Financeira para todos e para toda vida” criou uma página online com dicas e orientações sobre educação financeira em tempos de Covid-19.

Acesse em https://padlet.com/wendy_carraro/edufinanceiracovid.

Saiba mais

Associação Brasileira de Estudos do Trabalho: http://abet-trabalho.org.br/

Grupo de Estudos Mundo do Trabalho: https://gtmundosdotrabalho.org/

Livro de Lorena Holzmann: O trabalho no cinema (e uma socióloga na plateia)

Livro de Ana Beatriz Ribeiro Barros Silva: Corpos para o capital: Acidentes de Trabalho, Prevencionismo e Reabilitação Profissional Durante a Ditadura Militar Brasileira (1964-1985)

Dia do Trabalho: reportagem da Mundo Estranho sobre o tema

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