Estudo revela impacto da pandemia nos atendimentos de saúde mental no Brasil
Artigo publicado na The Lancet Regional Health Americas mostra que houve redução do acesso aos serviços de saúde mental ambulatoriais e hospitalares. Resultado pode indicar risco de uma pandemia de saúde mental de longo prazo
O artigo “A próxima pandemia: impacto da COVID-19 na assistência à saúde mental em um estudo epidemiológico nacional” (The next pandemic: impact of COVID-19 in mental healthcare assistance in a nationwide epidemiological study) publicado na quinta-feira, dia 2, pela revista The Lancet Regional Health Americas apresenta o primeiro estudo de abrangência nacional sobre o impacto da pandemia nos atendimentos de saúde mental no Brasil. A pesquisa faz parte do projeto de doutorado do psicólogo Felipe Ornell, sob orientação de Lisia von Diemen, professora do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento da UFRGS e vice-diretora do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas do Hospital Clínicas de Porto Alegre.
Com base em dados do DataSUS, que reúne as informações sobre os atendimentos realizados no Sistema Único de Saúde (SUS), os pesquisadores analisaram a média de atendimentos em saúde mental (2016 a 2020) e a expectativa prevista caso não houvesse a pandemia da covid-19, comparando o número observado dos atendimentos durante a pandemia, contra o que seria esperado segundo projeções. Foi verificado que, em relação ao esperado, houve uma redução de 28% nas consultas ambulatoriais em saúde mental entre março e agosto de 2020. Isso significa que cerca de 470 mil atendimentos podem não ter sido realizados no período inicial da pandemia no Brasil. Este resultado é particularmente preocupante se considerarmos que pacientes crônicos demandam acompanhamento constante, especialmente aqueles com depressão grave, esquizofrenia, transtorno bipolar ou que fazem uso de drogas. O estudo mostra ainda que as internações psiquiátricas tiveram queda de 38%, entretanto, as hospitalizações por risco de suicídio permaneceram estáveis. No mesmo período, aumentaram em 36% os atendimentos emergenciais (de pacientes que já eram atendidos nos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS) e em 52% os atendimentos domiciliares em saúde mental. No entanto, o autor chama a atenção que esse aumento nos atendimentos domiciliares é insuficiente (média de 22.248 atendimentos durante a pandemia), pois é muito inferior ao número de pacientes que deixaram de ser atendidos. O cenário aponta para um possível agravamento da crise de saúde mental, já reportada pela Comissão Lancet em 2018, e para uma pandemia que pode ter duração mais longa que a própria crise gerada pela covid-19.
Os resultados encontrados estão em consonância com estudos conduzidos em outros locais, sobretudo em países desenvolvidos, mas os autores ressaltam que, tendo em vista a heterogeneidade socioeconômica brasileira, esses números podem indicar um cenário ainda mais preocupante, já que no país o índice de transtornos mentais era elevado mesmo antes da pandemia. Ainda, cerca de 77% da população brasileira habita localidades onde a cobertura da Rede de Atenção Psicossocial é baixa ou inexistente, conforme relatado por um estudo prévio. O pesquisador afirma que um dos objetivos foi chamar a atenção para este problema e fomentar discussões sobre a relevância da estruturação de políticas de saúde mental de enfrentamento, contemplando estratégias de prevenção, rastreamento e tratamento. “O estudo sinaliza que o cenário atual pode agravar a crise de saúde mental já existente e sobrecarregar o sistema de saúde no futuro. Muitas vezes há uma lacuna entre o surgimento dos sintomas e a busca por acompanhamento, o que implica em perda de anos de vida e gera impactos econômicos e sociais”, avalia Felipe.