Que relações podemos estabelecer entre arte contemporânea, educação e formação docente?

JOTA MOMBAÇA: Não vão nos matar agora

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Foto do perfil no Instagram @monstraerratik 
Fonte: https://www.instagram.com/monstraerratik/

Antes que você comece a perguntar quem é Jota Mombaça, é preciso lidar com algumas perguntas feitas por ela:

Como desfazer o que me tornam?”

Como desmontar o imperativo de ser?”

Bicha não binária, nascida e criada no nordeste do Brasil”. Assim se apresenta a artista contemporânea e pesquisadora Jota Mombaça (Natal/RN,  1991). Se nomeia – como só ela poderia –  sob conotações que são muitas vezes atribuídas  pelo “outro” de forma pejorativa. E faz isso com toda consciência de quem defende que: “é preciso nomear a norma”, já que aquilo que não se nomeia está sob o privilégio de não ser questionado.

Desde dentro dos clichês com os quais são enquadrados aqueles que não cabem – e não querem mais ter que caber – nos padrões sociais dominantes, é de onde Jota Mombaça implode conceitos do que é “ser normal”. 

Bicha não binária, nascida e criada no nordeste do Brasil.”

Bicha não binária, nascida e criada no nordeste do Brasil”. Assim se apresenta a artista contemporânea e pesquisadora Jota Mombaça (Natal/RN,  1991). Se nomeia – como só ela poderia –  sob conotações que são muitas vezes atribuídas  pelo “outro” de forma pejorativa. E faz isso com toda consciência de quem defende que: “é preciso nomear a norma”, já que aquilo que não se nomeia está sob o privilégio de não ser questionado.

Desde dentro dos clichês com os quais são enquadrados aqueles que não cabem – e não querem mais ter que caber – nos padrões sociais dominantes, é de onde Jota Mombaça implode conceitos do que é “ser normal”. 

Sob uma série de camadas de exclusão da normalidade inscritas em seu próprio corpo como feridas, a artista performa a si mesma reagindo à sistemática e histórica colonização dos corpos e de suas diferenças. Abre-se íntima, corajosa e dolorosamente através da performance e das palavras, escritas e faladas. Ações e palavras-conceitos que operam tanto na linguagem e espaços acadêmicos, quanto fora deles.

Ocupando politicamente diversos espaços em situações difíceis de traduzir, através da arte e do seu corpo, Mombaça tensiona questões raciais e de gênero, padrões estéticos, origem periférica, entre outras problemáticas da história colonial onde a democracia racial é uma ficção. As relações entre o humano e o monstruoso com as quais ela provoca o espectador causam imenso desconforto àqueles que esperavam encontrar a imagem que estabeleceram como aceitável, o “sujeito normal”. 

Filme “O que não tem espaço está em todo lugar” (2020) Fonte: https://ims.com.br/convida/jota-mombaca/

Criticando também a captura das lógicas de representatividade, práticas antirracistas e decoloniais das quais o sistema branco aprendeu a se apropriar, Mombaça reclama tanto a possibilidade de visibilidade dos que estão sob um regime de apagamento, quanto a liberação destes do peso do olhar exotizante. Aqueles que são tornados “invisíveis como sujeitos, e expostos como objetos.” (MOMBAÇA, 2021, p. 76).  

Escrevo agora para os brancos – para os homens brancos, bem como para todas as gentes brancas – cuja brancura é menos uma cor e mais um modo de perceber a si e organizar a vida, uma inscrição particularmente privilegiada na história do poder e uma forma de presença no mundo: nós vamos nos infiltrar em seus sonhos e perturbar seu equilíbrio.

Às pessoas heterossexuais, cuja heterossexualidade é contínua ao regime político de homogeneização sexual, extermínio dos desejos subnormais e genocídio das corporalidades desviantes, eu gostaria de dizer: nós vamos penetrar suas famílias, bagunçar suas genealogias e dar cabo de suas ficções de linhagem.

Para cada pessoa cisgênera que olha a si e se vê como norma, e assim olha o mundo e o vê como espelho, deixo o seguinte recado: nós vamos desnaturalizar a sua natureza, quebrar todas as suas réguas e hackear sua informática da dominação. (MOMBAÇA, 2021, p. 75).

O trabalho de Mombaça não trata do esperado. Não é sobre “destruir para recriar”, mas, segundo ela, de “criar formas continuadas de destruição”, de elaborar “um programa simultaneamente auto-destrutivo de invenção”. Uma demolição que implica um incessante “cuidado destrutivo” em relação às coisas que precisam queimar para que realmente cesse o funcionamento colonialista, a abolição sempre inconclusa, a masculinidade compulsória, entre outros estados de poder do mundo tal como está. Nesse processo, ela nos lembra que “toda transição é uma experiência de fim de mundo.”

Como a arte pode ser uma forma de destruição e sobrevivência?

Diante da necessidade de perfurar camadas de sentidos tão sedimentadas, que táticas de sobrevivência é preciso criar?

 

Na performance “A gente combinamos de não morrer”(2018), cujo título faz referência a um conto de Conceição Evaristo, Mombaça cria facas com cacos de vidro, madeira e cadarços vermelhos. Armas precárias de defesa contra a ameaça da violência, armas contra a precarização das chances de defesa. Armas apontadas para quem a assiste passivamente.

Se o combinado é não morrer, ela prossegue a resistência, não só como pensadora radical, mas como pensadora contra o radicalismo das violências. Seu livro, intitulado: “Não vão nos matar agora” (2021) é mais uma das armas.

O enunciado de não aceitação, como um grito que dá uma ordem, pode ser pensado como conjuro e anunciação sobre um futuro, mas trata de um agora. Este que a faz viver como estrangeira, paradoxalmente em Portugal, porque o “Brasil é um risco de morte”. O livro, escrito em capítulos decrescentes, como ela diz, “cria uma barricada para roubar o tempo”, quebrando a ordem linear do tempo colonial e cobrando uma dívida que precisa ser paga.

Em um mundo onde “o futuro é um privilégio para poucos” Mombaça é uma brasileira que sobrevive. A expectativa de vida para pessoas trans em nosso país é de cerca de 35 anos de idade.

Na ação de “Soterramento” a artista está saindo debaixo de um monte de terra. Olhando para a imagem que nos é dada aos olhos por Mombaça, olhando para o chão que temos como nosso, pisando sobre essa terra carregada de sangue e de disputas, o que podemos dizer sobre as diferentes formas de vida que podem nascer e sobreviver sobre o solo brasileiro? 

Quais subjetividades estão soterradas em nosso país? Quem são os “sujeitos normais”, os “sujeitos não-marcados”, confortáveis em seu ser? Por que nunca questionados em sua normalidade? 

Na ação “Que pode o Korpo?” (2013) junto a Patrícia Tobias, Mombaça tem seu corpo coberto por pedras britas enquanto diz:

“Corpo, território ocupado pelo sex-Império. Objeto a ser moldado pela tecnocultura heterocapitalista. Corpo de macho. Corpo de macho castrado de cu. Corpo-colônia. Corpo marcado. Corpo usurpado pelos sistemas classificatórios. Corpo lacrado, embalado a vácuo ou triturado e encapsulado para facilitar o tráfego. Tráfico de corpos. Corpo produto. Corpo de macho emburrecido enlatado. Corpo-colônia. Corpo desencarnado. Corpo submisso ao Eu, à identidade transcendente. Corpo de macho dominador submisso. Corpo de macho enclausurado em seus privilégios. Corpo de macho vigiado. Corpo de macho drogadiço e vigiado. Corpo de macho covarde drogadiço e vigiado. Corpo devastado. Corpo photoshopado devastado. Corpo photoshopado sarado devastado vazio. Corpo desabitado. Ruína de corpo. Corpo bombardeado em Gaza. Corpo que se atira da ponte. Corpo suicidado. Corpo sem vida. Corpo impensável. Corpo, território isolado pelo sex-Império. Corpo prozac. Corpo scotch. Corpo cocaine. Corpo desidratado. Corpo de nóia. Corpo amputado de nóia desidratado. Economia de corpos. Corpo, objeto a ser moldado e descartado pela tecnocultura heterocapitalista. Corpo gramacho. Corpo de lixo. Lumpencorpo. Então… Como vergar esse corpo? Como dobrá-lo? “

Que pode o Korpo?” (2013) Fonte: https://vimeo.com/64778343

O que esse corpo acusado como “monstruoso” diz de nós mesmos?

Se esse corpo que foge do que é considerado “normal” nos violenta, de que modo isso nos torna cúmplices da violência extrema sobre esse outro, considerado desviante? Por que o desvio e a desobediência da norma incomoda tanto? Sim, é preciso nomear a norma. Hackear, infiltrar, penetrar, desnaturalizar a norma.

Notícia completa aqui
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E a escola, frente a todo esse massacre? De que forma a invisibilidade desses temas nos ambientes escolares cria modos para que a violência contra o outro seja tolerável e até desejável? A escola pode ser um espaço neutro em relação a violência contra esses corpos desviantes?

Paul Preciado, a respeito da morte de um jovem trans que sofria situações de assédio e humilhação constantes em Barcelona, nos ajuda a imaginar outras possibilidades:

Quero imaginar uma instituição educativa mais atenta à singularidade de cada estudante que à preservação da norma. Uma escola microrrevolucionária, onde seja possível potencializar uma multiplicidade de processos de subjetivação singular. Quero imaginar uma escola onde Alan poderia continuar vivo (PRECIADO, 2020, p. 199).

Como, desde o lugar que ocupamos em relação à norma, nos posicionamos? Jota Mombaça não para de nos alertar através de suas performances e de suas palavras ácidas. “A gente combinamos de não morrer”, diz em coro com Conceição Evaristo:

Não, não vão nos matar agora.

Podemos imaginar uma escola que seja um espaço de multiplicidade de subjetividades e existências singulares? De que modo a arte potencializa uma outra imaginação para a escola?

Texto e pesquisa: Diane Sbardelotto e Luciana Gruppelli Loponte

Edição e revisão: Diane Sbardelotto e Luciana Gruppelli Loponte

Referências

MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.

MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma distribuição de gênero e anticolonial da violência. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi/19 

PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Rio de  Janeiro: Zahar, 2020.

Links:

https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2021/07/09/morre-a-mulher-trans-que-teve-40percent-do-corpo-queimado-por-adolescente-no-centro-do-recife.ghtml

https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/07/07/80-pessoas-transexuais-foram-mortas-no-brasil-no-1o-semestre-deste-ano-aponta-associacao.ghtml

https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/06/28/expectativa-de-vida-de-trans-no-brasil-se-equipara-com-idade-media-diz-advogada

Live lançamento do livro: https://www.youtube.com/watch?v=nipZYOeMxIA

Site de Jota Mombaça

Instagram @monstraerratik

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