Prof. Dr. Tiago Degani Veit (ICBS/UFRGS)
Há algum tempo, publiquei uma postagem neste blog explicando o porquê de a memória imunológica não poder ser estimada meramente a partir dos níveis de anticorpos circulantes em um indivíduo convalescente ou vacinado (ler a postagem aqui). A memória imunológica envolve vários elementos e, na postagem de hoje, pretendo usar como exemplo um estudo conduzido por um grupo de cientistas da Universidade da Pensilvânia, que analisou os níveis e a especificidade de anticorpos de 2043 profissionais de saúde durante a primeira onda de COVID, em 2020, e que mostrou que infecções recentes por coronavírus sazonais relacionados ao SARS-CoV-2 podem reduzir a duração da COVID-19. O estudo foi publicado como pré-impressão no repositório MedrXiv no dia 19 de abril (S. Gouma et al., https://doi.org/f7zp; 2021)
Os pesquisadores partiram do pressuposto de que algumas pessoas que tiveram infecção por coronavírus sazonais, que causam o resfriado comum, podem apresentar anticorpos que podem também se ligar às proteínas do SARS-Cov-2, o que poderia fornecer uma certa proteção contra o vírus. Entretanto, eles descobriram que as pessoas que apresentavam esses raros anticorpos pré-pandêmicos específicos contra o SARS-CoV-2 não estavam protegidas contra a infecção pelo vírus nem contra o desenvolvimento da COVID-19. O que se observou, ao invés disso, foi que concentrações altas de anticorpos contra outros dois betacoronavírus – OC43 e HKU1 – estavam associadas a uma recuperação mais rápida dos sintomas do COVID-19. Vale salientar que os anticorpos detectados nesses pacientes NÃO eram específicos contra o SARS-Cov-2, mas sim contra os seus ‘parentes’ OC43 e HKU1. Portanto, os anticorpos em si não estariam ajudando a combater a infecção, mas ainda assim estariam associados a um quadro clínico mais leve. Como explicar isso?
Para entender como as infecções pregressas por coronavírus sazonais podem ajudar a limitar a extensão da infecção pelo SARS-Cov-2, é necessário entender como a resposta imune funciona. Ao reconhecer a presença de um microrganismo patogênico e/ou um sinal de lesão, são acionadas várias células imunes que têm a função de eliminar esse microrganismo, cada uma a seu tempo. As primeiras células a serem ativadas, os fagócitos, têm a propriedade de engolfarem e degradarem os microrganismos. Após degradarem as partículas virais, eles apresentam pedaços dos vírus para um conjunto de células muito importante: as células T. Essas células são responsáveis, entre outras coisas, por matarem as células infectadas pelos vírus e também por ativarem as células que vão produzir os anticorpos – as células B. Ou seja, em uma resposta imune específica contra um microrganismo, a ordem de ativação é a seguinte:
- Fagócitos –> 2. células T –> 3. células B –> 4. produção de anticorpos
No final da infecção, o corpo mantém uma população de células B e T de memória específicas contra o microrganismo, que tem a função de reconhecer e atacar mais rapidamente o patógeno caso ele volte a nos infectar. Essas populações tendem a ser tão mais efetivas quanto mais parecido o patógeno da segunda infecção for com o primeiro patógeno. Isso se traduz, entre outras coisas, na frequência necessária de imunizações para nos mantermos imunes a determinadas infecções (Ex: na gripe, o vírus varia muito –> vacina anual; na febre amarela, varia pouco –> uma única dose para toda a vida).
Cada célula T, assim como cada célula B, é uma especialista, ou seja, reconhece apenas um determinado pedaço (ou antígeno) do microrganismo. Entretanto, enquanto as (milhares de) células B ativadas numa infecção reconhecem prioritariamente as antígenos da superfície do vírus (como a proteína S), as (milhares de) células T ativadas contra o mesmo vírus, no seu conjunto, o reconhecem “por dentro e por fora”, já que o vírus já é apresentado para elas em pedaços (se o vírus fosse uma laranja, as células B reconheceriam majoritariamente a casca, e as células T, a casca, os gomos, as sementes, etc.). O fato de as células T reconhecerem potencialmente mais antígenos do que as células B permite que, em uma segunda infecção com um microrganismo ‘aparentado’, haja uma maior probabilidade de que algumas células T remanescentes da primeira infecção (chamadas células T de memória) possam reconhecer antígenos que são comuns ou semelhantes entre os dois patógenos. E por que as células T de memória são importantes? Simplesmente porque elas possuem um tempo de ativação muito, mas muito menor do que quando elas são ativadas pela primeira vez. Essa ativação mais rápida costuma encurtar o tempo necessário para a produção de anticorpos em alguns dias, além de mobilizar mais rapidamente as células T citotóxicas para matar células infectadas. E, nesta infecção pelo SARS-Cov-2, o tempo de reação do nosso sistema imune adaptativo é um fator-chave para o curso da infecção – entre ser leve e, por vezes, assintomática, ou grave, com risco de vida.
Aplicando esses conhecimentos para o estudo apresentado aqui, o que podemos inferir? Podemos inferir que os anticorpos contra os coronavírus sazonais foram associados a uma COVID mais leve porque eles são o indício visível de uma memória imunológica que foi montada contra esses coronavírus que causam o resfriado comum, e nessa memória existem tanto células B (que, ao que parece, pouco ajudam numa infecção por SARS-Cov-2) quanto células T de memória que reagiriam contra o SARS-Cov-2 e, ao que tudo indica, parecem desequilibrar o jogo a nosso favor. Esses dados são muito interessantes e reforçam o quanto é insuficiente levarmos em conta apenas os níveis de anticorpos para estimar a memória imunológica. É possível que a proteção conferida por essas células T que preservamos para combater esses vírus de resfriado seja uma das responsáveis pela baixa proporção de casos graves, em comparação aos casos leves e assintomáticos. Os dados do estudo sugerem também que indivíduos soronegativos que tiveram COVID podem sim apresentar memória imunológica na forma de células T de memória que poderá ajudá-los na ocorrência de uma reinfecção pelo SARS-Cov-2. Entretanto, neste caso específico, trata-se de uma memória imunológica que poderíamos considerar como menos que ótima. A memória imunológica classificável como ótima contra o SARS-Cov-2 é aquela com que podem ser observados tanto a presença de altos títulos de anticorpos quanto de células T de memória específicas para o vírus, e o cenário em que essa meta é mais facilmente atingível não é com uma infecção por SARS-Cov-2 ou por qualquer coronavírus sazonal: é com a vacinação. Portanto, mantenhamos a guarda alta até o grande dia, praticando o distanciamento social, evitando aglomerações e usando mascara PFF2 sempre ao sair na rua.