Por Carlos Eugênio Silva – Professor do ICBS-UFRGS
Em biologia, a interação entre duas espécies gera um conjunto de adaptações que são dinâmicas e envolvem aquilo que chamamos de “corrida evolutiva”. Por exemplo, se um hospediro desenvolve um tipo de defesa novo, é muito vantajoso ao parasito desenvolver algum tipo de contra-ataque e vice-versa, caso contrário, haverá uma vantagem crescente de um sobre, uma vez que linhagens mais bem-sucedidas simplesmente persistem, enquanto as outras vão desaparecendo. Esse tipo competição entre os elementos biológicos foi chamado pelo biólogo norte-americano Leigh Van Valen (1973) de “Hipótese da Rainha Vermelha. O pesquisador faz referência ao personagem homônimo do livro Alice através do espelho, de Lewis Carroll (1832-1898). Numa passagem do livro, Alice, já cansada de correr e espantada por todas as outras coisas parecerem ter permanecido imóveis, recebe a explicação da Rainha Vermelha: “Alice, aqui, como você vê, precisamos estar sempre correndo para ficar no mesmo lugar”.
A situação de pandemia que vivemos pode ser um bom exemplo disso, com o homem tentando utilizar a inteligência na produção de vacinas em resposta a facilidade infectiva de um tipo de Coronavirus. Pois um estudo que ainda está sob revisão comparou a imunidade vacinal promovida pela vacina Pfizer-BioNTech e a imunidade natural contra a infecção pela variante Delta em Israel, o que nos mostra em que pé estamos nessa “corrida”.
Nesse estudo a imunidade natural revelou ser 13 vezes mais potente que a vacina em questão, o principal imunizante utilizado em Israel. Foi demonstrado que a imunidade natural foi mais efetiva em prevenir a hospitalização e as manifestações da Covid-19, ou mesmo a infecção pela variante Delta do Sars Cov-2.
O estudo avaliou indivíduos do Maccabi Healthcare Services, serviço de saúde estatal de Israel com 2,5 milhões de atendidos. Gazit e colaboradores (2021) estudaram 3 grupos que chamaremos aqui de: grupo de somente vacinados ou VA, composto por 673.676 indivíduos, sem a exposição prévia a SARS-CoV-2 e que recebeu a imunização recomendada, com duas doses da vacina; grupo de infectados e vacinados ou IV, com 42.099 indivíduos, que apresentou infecção prévia por SARS-CoV-2 e recebeu apenas uma dose da vacina; e o grupo de somente infectados ou IN, 62.883 indivíduos não vacinados e previamente infectados pelo SARS-CoV-2. Sendo assim, o artigo é o maior maior estudo observacional em grade escala comparando imunidade natural e vacinação realizado até agora.
Este estudo foi realizado de 1 de junho a 14 de agosto de 2021, quando a variante Delta era comum em Israel e comparou a taxa da infecção por SARS-CoV-2, a severidade da COVID 19, a hospitalização e a mortalidade. O grupo VA apresentou um risco 13,06 vezes maior (IC de 95%, 8,08 a 21,11) de apresentar infecção pela variante Delta em comparação em comparação com os grupos IV e IN, infectados naturalmente 5 a 6 meses antes do estudo. O risco de desenvolver manifestações de Covid-19 pela variante Delta também foi maior para o grupo VA (P <0,001). O grupo de VA também foi mais vulnerável à hospitalização. Quando a infecção ocorreu em qualquer momento antes da vacinação (março de 2020 a fevereiro de 2021, grupo IV), foi demonstrada uma chance 5,96 vezes menor de diminuição da imunidade natural (IC de 95%, 4,85 a 7,33) e uma chance 7,13 vezes menor de manifestações graves (IC 95%, 5,51 a 9,21) que no grupo VA. Os indivíduos exclusivamente vacinados (VA) contra a SARS-CoV-2 também correram um risco maior de hospitalizações pela variante Delta em comparação com aqueles que foram previamente infectados. Não houve mortes em nenhum grupo durante o estudo.
Embora mais trabalhos sejam necessários, os pesquisadores acreditam que os resultados do trabalho podem indicar que outros antígenos devam estar contribuir para incrementar a proteção, além da proteína Spike (tipo de proteína de superfície viral ou peplômero). O trabalho é interessante pela proposta e pelo número de participantes envolvidos, o que só seria possível em um país com grande mobilização para vacinação. Entretanto, os autores levantam elementos importantes que não puderam ser controlados neste estudo, como a ausência de testagem em indivíduos assintomáticos, uma vez a busca não foi compulsória, mas espontânea, e o comportamento natural dos indivíduos que não conseguem prever erros no autocuidado (máscara, distanciamento social e higiene das mãos e mucosas). É importante observar que as vacinas podem adicionar um impulso extra à proteção de comunidades que se recuperaram da COVID-19. Os resultados mostraram que a imunidade natural seguida de uma única dose vacinal (IV) promoveu maior proteção contra o reinfecção do que na imunidade natural sozinha (IN) e ainda não existem estudos a respeito do efeito da terceira dose (segundo reforço).
Mas cuidado! Insistir na vacinação é dar um tiro no pé. É procurar entender como insraelenses que sobreviveram a infecção, podem ter uma resposta 13 vezes melhor que seus compatriotas que receberam a vacina Pfizer-BioNTech. A imunidade natural nos dá grandes oportunidades para esclarecer os mecanismos de reconhecimento e neutralização viral, de maneira que isso aprimore a vacinação. Nossa vantagem evolutiva não está relacionada apenas à nossa capacidade genética de resistir à infecção, mas também a nossa capacidade intelectual de tentar impedir qualquer morte; é ter consciência de não correr o risco de estar entre os 2% que morrem pela infecção natural, caso não tenham nenhum tipo de proteção prévia!!! Esta é a nossa “corrida da Rainha Vermelha”, onde fugimos do bandido sem utilizarmos somente as “pernas”, pois tentamos salvar até os que não têm fôlego.
Hipotese da Rainha Vermelha. Sugestão de leitura: https://cienciahoje.org.br/artigo/a-rainha-vermelha-e-o-bobo-da-corte/
Gazit S, et al. Comparing SARS-CoV-2 natural immunity to vaccine-induced immunity: reinfections versus breakthrough infections. medRxiv, 2021. https://doi.org/10.1101/2021.08.24.21262415